DEC.LEI Nº344/97

TODOS OS TEXTOS SÃO DA PROPRIEDADE DO AUTOR E ESTÃO REGISTADOS AO ABRIGO DA LEI DA PROTECÇÃO DOS DIREITOS AUTORAIS E PROPRIEDADE INTELECTUAL. INCORRE NO CRIME DE CONTRAFACÇÃO QUEM SE APROPRIAR, COPIAR, PLAGIAR E MENCIONAR NO TODO OU/E EM PARTE OS TRABALHOS AQUI PUBLICADOS, EM CONFORMIDADE COM O CÓDIGO DE DIREITOS DE AUTOR E DOS DIREITOS CONEXOS.
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Escrever é poder amar-te



quarta-feira, 20 de agosto de 2008

AINDA

A força da força desenrolou-se como uma vaga que se alteia até rebentar estrondosa contra as rochas, refrescar o que de seco e morto parecía, um milhão de organismos invisiveis que abrem os olhos e esticam os braços na felicidade de se saberem vivos, até quando que interessa, importam sim as histórias de mares que escutarão ainda e de novo o ânimo, esbater e reacender na próxima gota de água, soro do sonho, beijo da imaginação, escrever é também amar-me.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

PARA A KATIA

[Um Milhão de Histórias por Te Contar] Novo comentário em PLAGIADORA.Caixa de entradaX
katia para mim mostrar detalhes 09:28 (12 horas atrás) Responder

katia deixou um novo comentário na sua mensagem "PLAGIADORA":

Porque entendo que a língua Portuguesa é de todos... não vou deixar de gostar menos do seu blog, é um dos meus favoritos... :)

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Publicada por katia em Um Milhão de Histórias por Te Contar a 14.7.08


Esta é a tua resposta.
Exibo-a para que todos os que por aqui passam possam lê-la e igualmente ficarem a saber sobre o que acho.
Não me parece que seja um pedido de desculpas, que sem dúvida mereço eu como autora exclusiva de todos os textos que aqui estão e também o merece quem por aqui me lê.
Merecerías TU muito principalmente.
Para que fizesses justiça a frase tão ilustre sobre a Língua Portuguesa como a que escreveste. Mas a língua de Camões não serve a quem se usa dela de forma apropriada de outros, seja no roubo, seja na citação seja no desamor que se lhe presta ao levá-la da pena alheia.
Escrever não é um acto de gastar tinta sobre o papel.
É amar principalmente, entendê-la e acarinhá-la.
É isso que eu faço aqui no Milhão de Histórias e no AM'art e na Casa de AM'art e tantos outros sitios virtuais e de papel que nem tu nunca poderás imaginar.
Acaso pensaste quando levaste o texto sem mencionares a sua autoría, o que eu iría sentir?
A tristeza?
A dor?
A mágoa de me sentir violentada porque me roubaram palavras minhas? Sentires meus? Amores de mim?
Porque não perguntaste? Mencionaste que não era teu o que publicavas? Se tanto gostas daqui porque não me pediste que escrevesse para ti?
Não te ficava mal, antes te enobrecía.
Mas desta forma, não.
Não te consigo perdoar.
Quando souberes o que é amar a escrita entenderás.

domingo, 13 de julho de 2008

PLAGIADORA



ATENÇÃO



PLAGIADORA



ROUBOU O TEXTO AQUI PUBLICADO A 30 DE MAIO E REPUBLICOU-O COMO SENDO SEU A 19 DE JUNHO.



PODEM ENCONTRAR A LADRA NO HI5 SOB UMA PÁG. ESCONDIDA, AQUI

É LAMENTÁVEL.
ESPERO QUE TE RETRATES PUBLICAMENTE E AQUI.

terça-feira, 1 de julho de 2008

HISTÓRIAS SEM FIM

E vieram as ondas, as areias, os calores e as memórias de Estios mais brilhantes, chegaram também os escaldões, baldes de plástico, gelados, beijos de Verão e sal na ponta da lingua. Molham como uma vaga que tomba e veste na pele o tempo de outras sereiras, mais histórias que um milhão, flores espremidas entre aromas de infância e os de gosto amadurecido, mãos que tapam os olhos e adivinham o sol a pôr-se e se apertam entre outras curtidas cambiadas nas rochas dos dias, todos os dias o pregão do vendedor, grita forte no anuncio dos meus sonhos, leva-os a roda de gaivotas, volta ao mar o eco de mim no regresso à terra deste contar sem fim.

domingo, 1 de junho de 2008

FÉRIAS

Não escrevo a palavra FIM. Apenas fecho o livro por uns instantes. As histórias hão-de continuar. Afinal tantas que faltam até ao milhão, tantas que contarei. Escrever é poder amar-te. Até breve.

sábado, 31 de maio de 2008

ANIMAL

A mulher fugiu de perto de si, escapou-se-lhe num ápice de desatenção, correu de quatro galgando estradas e levantando pó, uivava, chamava o resto para se lhe juntar ou para a acudir na matilha que de baba pinga a defesa, presas exibidas no ataque se tentar recuperar erecta a mulher que partiu de dentro de si.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

SE UM DIA...

Diz-me que te lembrarás de mim depois de eu ir, mesmo que seja só na partida da separação de nós dois, diz-me que pensarás em mim de vez em quando mesmo que o faças só porque a melodia que toca no rádio era a que eu cantarolava, diz-me que te lembrarás de mim quando escutares alguém chamar um nome igual ao meu e até procurarás saber se serei mesmo eu, diz-me que te lembrarás de mim no cheiro da hortelã-pimenta, era esse o meu hálito lembras? Ou então não digas nada, não lembres nada, fiquemos os dois como somos agora, a segregar todos os pormenores um do outro como se algum dia precisássemos de dizer, anda diz-me que te lembras de mim se um dia eu partir.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

ETERNA(MENTE)

Rodava a aliança sem parar, um tique que ganhara havía muitos anos, solta, o dedo magro estreitava-se mais ainda na cintura do ouro, não se apercebía do gesto, só o nervoso e embaraço ou a saudade e o choro contido a impelíam para a segurança de o girar como se desse corda a um relógio invisivel para que o momento passasse rápido e se dissipassem esses incómodos que lhe vestíam o semblante. A aliança estava gasta, não do movimento que lhe dava mas do polimento dos anos que a tinha à sua mercê, mais de viúva do que acasalada e nunca quisera juntar à dela a que fora dele. Talvez porque no dia que ele lha devía ter entregue não aparecera e ela ficara a eterna noiva de mão esticada a aguardar o selar da comunhão.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

RUAS (MINHAS)

Passei por ruas velhas, velhas ruas do meu passado, abri álbuns de fotografias a branco e negro e sorri ao ver-me sorrir entre pares de mãos tão maiores que as minhas. Passei por ruas muito passadas, renovadas de outros sorrisos, descobri-lhes ruídos que acordaram a minha memória, virei-me para trás, talvez me chamem. Passei por ruas calejadas de pés, cascos, sapatos e rodas, hoje ainda eu lhe acrescento os meus passos. Hei-de voltar às ruas velhas. Hei-de fazê-las novas e pequeninas como as minhas mãos, coloridas como as lembranças que me abrem caminhos no coração.

terça-feira, 27 de maio de 2008

LIVRE (ESCREVER É PODER AMAR-TE)

Pedem para saír, vir ao mundo, até sabem o meu nome, acrescentam-lhe amor, amor e eu deixo, quero, preciso que este frenesim de dar-me não se interrompa no calcar rotinado dos dias, permito-me amarrotar entre fatias de tempo só para que vivam nesta branca dimensão única em que a pecadora sou eu, simples mortal que obedece à imposição de quem me comanda e não se deixa ver se não nas linhas que escravizo entre mãos alugadas pelo sentir deles, de todos, dos que me ensinaram que escrever é poder amar-te. E sou livre, então.

domingo, 25 de maio de 2008

GOTAS

Recosta-te, deixa-me encostar em ti, no teu peito, ouvir o tambor que rufa para mim chamando-me para abraços e beijos no cabelo, apertos como teias que me agarram ao teu sentir, fiquemos assim, lá fora canta a chuva de mansinho entre os raios de sol a espreitarem de faixas cinzentas um azul magoado, não precisamos dizer nada para sabermos o que vai no mundo, suspira, é para mim.

sábado, 24 de maio de 2008

DESPREVENIDA

Fugira de dores e de mágoas enquanto o coração lhe permitiu ser cego. Um dia trocou-lhe as voltas, esperava-a numa rua sem nome e assaltou-a de esticão. De vítima passou a crente e nessa sublimação do sentir fundamentou a sua vida. Provou de tudo, desde o sol à frieza da angústia. Vejam-na pedinte, esmola-se por voltar à anterior condição, gastou na ganância da paixão o medo de não voltar a tê-lo. Porém, um só abraço e esquecerá a prece da imunidade, um beijo e a explosão ouve-se, uma palavra e endeusa-se.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

O JORNAL

Naquela tarde como de todas as vezes, sentou-se de frente para o mar e de jornal aberto. Sacudiu as páginas, notou os dedos manchados de tinta da impressão, as gordas destacando-se no colorido do negro uniforme, os anúncios. Chegou o café a confortar-lhe o dia marasmado na rotina sem sobressalto, dissolveu o açúcar como dissolvera qualquer questão da sua vida, sempre à volta até desaparecer. Voltou à leitura, entornou sangue de vítimas na estrada e silenciou os gritos dos que fugíam da guerra, contou trocos no bolso de mais uma subida de preços e fez-se juíz de sentença igual em processos cor de rosa. Constatou num conformismo aquietado que tudo estava na mesma. Foi quando o mar se alteou e ele descuidado dentro de si não se apercebeu da vaga que estalou junto a seus pés. Notou o jornal humedecido, salgado, choroso. E a partir dessa tarde como de todas as vezes, passou a sentar-se de frente para o mar, o jornal aberto. Com um rasgão ao meio para poder ver a vida a viver.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

OUTRA VEZ NÃO

Porque insistes, porque forças a minha porta depois de teres batido com ela, as costas zangado a darem a última resposta às minhas perguntas como lamentos, as mãos como lágrimas, o silêncio como a despedida e agora regressas, chamas por mim, gritas o meu nome, vai-te, não quero raspar na ferida e sangrá-la de novo, encher-me de sorrisos e promessas, porque insistes no que não queres, porque pedes o que já tiveste e na fartura te enjoas de novo, antes fome das saudades e remorso de mesa cheia que de mim outra vez não. Não.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

FOSTE EMBORA

Partiste. Esta madrugada cheguei à tua porta e já não te encontrei. Tudo cerrado, espreitei pela janela, dei a volta à casa, ainda cheirava ti, a flores secas que deixaste como um rasto, o fumo do cigarro a desenhar sonhos, o papel e a caneta ainda mornos do aperto e do roçar mas palavras já não achei nenhumas, tive de me contentar com a memória das que foste inscrevendo nas noites pelas paredes desta casa que agora deixaste, tentei apurar se alguma ainda restava a escorregar nesse tempo mas nada, e nem mesmo o luar me iluminou para te seguir as pegadas.

terça-feira, 20 de maio de 2008

O QUADRO

Não vou dizer que me surpreendi, tão pouco que nessas ruas da vida já nos tropeçámos ou passámos no olhar desconfiado de reconhecer a cara amiga, não, nunca nos encontrámos nem ouvimos a cor da voz mas conheço-te, desde sempre, fiz-te dentro de mim, assim esculpido como te esborratas nessas fotografias distorcidas que cortam a figura pela altura do coração, o rosto mediterrânico, o nariz aprumado no helenismo que sempre suspeitei, já o sabía, assim como as amarras de ferro que te escoram a liberdade e a penitência que te entrega à arte, os pratas e os vermelhos, o querer e o calar, sempre te soube dessa maneira por isso leio o teu silêncio e embebo-me dele, negro, profundo, como o quadro que fazes de ti.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O VIDREIRO

Vinha enrolado na ponta de uma vara, muito brilhante, ovalado, um núcleo incandescente que parecía ter vida lá dentro como a barriga de uma mulher prenhe, sempre a rodar, o artesão suado de bagas transparentes que deixavam antever cores de fogo tesourava-lhe um excesso mole e pendente, surgíam os âmbares vaidosos amparados no laranja e vermelho, cingía-lhe uma cintura à força do ferro da tenaz e depois na vara soprava, soprava muito enchendo as bochechas que quanto mais se deformavam mais enchíam de beleza aquele ovo que se transformava numa ave elegante e colorida. O vidreiro chorava então, o peito rebentado no esforço da transfusão do ar à sua criação, a liberdade ao seu pássaro, a sua missão terminada. Descansa hoje a vara, o polme de embrião de vidro, o ombro e a mão queimada. Já não tem coração, gastou-o na forja de dar asas a muitas aves. Fechou os olhos quando lhe cerraram as portas do seu sonho.

domingo, 18 de maio de 2008

É A TUA VEZ

Hoje é a tua vez, conta-me uma história, inventa uma coisa qualquer por mais tonta que ela seja aos demais que eu vou ouvir-te e deixar-me guiar pelo teu verbo até onde me quiseres levar, basta que me fales do rio, do mar, da chuva e de outros oceanos que tragas dentro de ti, verte-os, molha-me das tuas palavras, leva-me ao teu mundo pelo tempo que uma fábula tem que eu vou. Mas não contes nada sobre o amor, esse silencia-o, toma-me os lábios e eu saberei todas as linhas desse livro de encantar.

sábado, 17 de maio de 2008

NUA

Qualquer dia quando menos esperares surpreendo-te, tiro a roupa, deixo-me nua em frente a ti. Até posso dançar e voltear, beliscar-te os sentidos entre véus que te atiçam o paladar e mãos que te puxam até sentir os teus joelhos nos meus, o hálito muito perto, o bafo quente do meu peito junto ao coração que te dispara e com que brinco, fujo, persigo-te na vontade de me teres e no desejo que te aumento pela corda de palavras que ato no teu pescoço e te trazem até mim, conto-te façanhas, manhas, segredos indecorosos só para te aguar, espevito a besta e peço o poeta. Um dia destes dispo-me mas de nada servirá se não me souberes ver nua na alma.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

ANTES E AGORA

Acenou-lhe. Perdera os laços, as tranças e as sardas rebeldes, ganhara seios e ancas. As mãos também, umas mãos finas de dedos delgados que exprimiam passados como borboletas na Primavera. Acenou-lhe, perdera o rubor infantil e as pestanas envergonhadas, ganhara pó de arroz e um olhar firme e rasgado que abríam trilhos na memória de tempos de carteira e bilhetes dobrados. Acenou-lhe, contou os anos sem se encontrarem, desfiaram vidas, juntaram lembranças de outros e confessaram amores de perdição no verde ladino amadurecido no reencontro. Do coração também, um coração revisitado no sabor do Outono, dourado a raiar no vermelho que isto de paixões nunca se esquece. Acenou-lhe, disse-lhe adeus, ganhara o dia, guardou segredo de voltar a ser menino outra vez.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

FALAR, FALAR

Falaram, muito e de tudo e de coisa nenhuma, ofereceram o som das palavras para abafar o do coração sempre tão perto dos lábios, pulsante no verbo escondido, é agora que te digo que te quero, é agora que te ouço dizer amo-te, ainda não, mais um pouco, um quase receio de materializar o etéreo, breve me despeço e tu não o dizes, espera, não vás já, quero dizer-te tudo o que não consigo, tenho de ir e na pressa da despedida a mão que segura as palavras desata o nó das gargantas, a pressa de te dizer que também te tenho em bem e dentro de mim, que o silêncio é o solene do que emociona, tanto, o tanto do mesmo de sempre e na próxima ainda se calam, ainda oferecem palavras que escondem o bater do coração.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O SÁBIO

Surgiu no alto da montanha, de braços abertos, redentor sem mágoas nem chagas, todo inteiro, sem punição nem mácula, soldado da natureza, ânimo, um antigo rei revelado entre o voo da águia e o som do riacho. Surgiu simples, forte, oferecendo cuidados e colhendo flores, passadas largas calcando caminho, rasgado no dar e nos olhos que enfrentam medos e fraquezas, palavras curtas e certeiras, amor como pão. Chamam-lhe sábio, eu chamo-lhe Homem.

terça-feira, 13 de maio de 2008

PODÍA TER SIDO

Estiveste tão perto, tão perto, bastava apenas que me tivesses oferecido um segundo e eu dava-te tudo, a mão, o olhar, o sabor dos beijos, um bosque imenso de emoções e de surpresas. Assim, porque não tiveste tempo só te posso mostrar o silêncio, oferecer-te recordações do que poderíamos ter tido, histórias inventadas por ti que de mim nunca ouvirás as que guardo e amortalho na boca. Não as contarei a mais ninguém, eram tuas, eras tu, cada uma feita de ti e do teu riso. Podía ter sido uma história sem final e sempre feliz, assim serão histórias novas, outras, para quem consiga chegar perto, tão perto de mim.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

O QUE DEIXO

Há em mim a minha história e também a que recebi de herança. Cada traço e cada vinco são sinais do meu tempo e do tempo dos que no amor me fizeram. Hei-de ter o mesmo sorriso e as mesmas rugas e os mesmos trejeitos e jeitos e por mais que negue hei-de fazer na repetição genética e do carácter aquilo que disse um dia nunca fazer, hei-de sorrir ao lembrar-me e hei-de beber da mesma água que em tempos rejeitei, hei-de apreciá-la e mantê-la e ainda tentar passá-la aos que vêm depois de mim que num ciclo fechado hão-de dizer o mesmo que eu e um dia também sorrirão ao recordar as minhas rugas e os meus vincos e a minha história e ao olharem o espelho encontram-se neles e na herança que lhes deixo.

domingo, 11 de maio de 2008

ESTRELAS

Sempre sonhara com as nuvens, trepá-las, tocar as estrelas, mas havíam-lhe dito que isso eram fantasias. Passou então a olhar o mar, a procurar nos cinco bicos das estrelas do mar os cinco sentidos, uma mão completa de emoções. Olhava o céu e achava-o tão parecido com o seu oceano que decidiu chamar-lhes irmãos, pois que afinal a água do mar e dos rios mais não é do que o azul ao contrário, as nuvens a espuma das ondas e se estrelas ao alto são histórias de encantar as que lhe tocam os pés cantam-lhe sons de muitas mãos que tocaram.

sábado, 10 de maio de 2008

ÁGUAS

Do rio tem a memória do ventre materno, do mar a lembrança do amor perdido nas vagas do tempo. De toda a água se faz mulher, nas lágrimas da dor batida e ainda daquela que não se vê, da que bebe na sede constante de poesia e também da da chuva que a baptiza no nome singular de ser quem é. Quer um dia perder-se nelas, retornar à inocência, devolver-se ao mar alterado e voltar a saber que das lágrimas nem sempre tudo será dor.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

O QUE SE SENTE E NÃO SE VÊ

Em frente à janela há um canavial. Alto, muito alto e verde. Tapa tudo o que se possa ver, apenas se imaginam cenas de homens dobrados colhendo da sementeira passada outros tantos suores. Em frente à janela há um assobio constante e choroso que pertence a alguém que não se vê. Longo, fino e apurado. Tapa todos os sons que se pudessem escutar, outras vozes que se calam para o ouvir e até os pássaros se penduram no canavial embalados pelo vento e pelo assobio que não se vê. Em frente à janela há um homem que sangra por dentro. Saudoso mas altivo. É maior a sua dor que todas as dos suores que chorou em sementeiras passadas e em canaviais que se deitaram de lá para cá ao rumo do vento e que embalam pássaros. Em frente à janela vê-se tudo, sente-se tudo, até a lembrança do homem que não se vê.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

NA NOITE

Há na noite esta magia de supormos que o encanto é mais brilhante e duradouro, os rostos mais bonitos e a sedução uma roupa que tomba sobre todos. Mas nas horas lentas e escorridas que alagam as paredes do meu quarto sinto dela uma solidão que me abafa como um figurino apertado espartilhando o bater do coração. A noite é mulher sózinha que busca outras mulheres para ter companhia, abraçam-se como roupas entrelaçadas que amachucam a saudade e despertam outras estrelas. Por isso o encanto, por isso a magia. Por isso as mulheres são na noite estrelas que se querem guardar no coração dos homens, iluminar-lhes o sentir, seduzir-lhes as horas em muitas eras. Magia. Ao romper do dia eles procuram por ela, incertos da sua existência, ansiosos do reencontro, comungando solidão.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

CAI O PANO

Podía arranjar um milhão de argumentos para voltar a procurar-te, a falar-te de todas as coisas que já conversámos vezes sem fim e que sempre servem de mote a sorrisos e silêncios denunciados de quanto nos queremos mas desta vez a dor grita mais e mais alto não deixando ouvir o coração. Podía até esquecer o milhão de histórias que inventei para te contar e fabricar outras, declamá-las teatralmente no dramatismo exagerado de quem gosta e não quer despedir-se mas desta vez as cortinas correm-se à mão, devagar e a sentir o peso do veludo de tudo o que se deixou para trás. Não posso ser outra personagem que não eu e tu tu próprio, este palco é a vida e o acto o último desta história que foi tão bonita.

terça-feira, 6 de maio de 2008

O PASSEIO

Quando chegarem os cavalos avisa-me, diz-me que estão prontos, ferrados, escovados e aparelhados para a montaria deste passeio na floresta encantada que também eu me preparo, levo um livro, uma capa e o rouxinol, tudo meu desde criança, não sería agora que os deixava abandonados à sorte de outros olhos, à pele de outros frios, ao sonho de terras distantes, levo-os para me recordar o caminho de regresso não vá na garupa perder-me no musgo e nos fetos destinados a outras histórias, tombar do cavalo empinado de saudade e não ter mão na rédea que curta já bastou a vida.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

(DES)VENDA-ME

Venda-me! Dedilha-me os olhos na sede de te sentir, braço longo , mão pequena, coração que ouço no eco do teu peito, onde estás, brinca comigo, desata o meu cegar na emoção da adivinha, agrada-me no sabor da maçã e no sal da paixão, brinda a este despertar de todo o corpo do amor que se faz quando as emoções se vestem para serem despidas dos pudores e nos beijos se alargam os olhos com que te vejo! Venda-me! Só para que sinta o quanto quero que me deixes nua de amarras em todas as noites e dias que o abraço é faixa maior que une a pele e a alma! Venda-me. Não deixes que veja o mundo que do mundo só sei de ti.

domingo, 4 de maio de 2008

(NÃO) ESTAR

Pior que dizeres vai-te, não te quero, é fazeres de conta que não estou, que a minha invisibilidade te incomoda como um par de sapatos por engraxar a destoar no fato de marca impecável nos seus vincos que aprumam a pose. Pior que me sorrires de boca sem o pisco do olhar é embaciares ao longe o horizonte de uma tela pendurada torta, distraída do seu efeito decorativo. Pior que me balançares a mão na tua é eu senti-la como um peixe pescado, frio, sem o ardor das guelras a lutarem por um ar que se escapa. Pior que estar sózinha e lúcida é embebedar-me neste estar de não ter espaço a ocupar pois se até o vazio o enche.

sábado, 3 de maio de 2008

A RUA

Deixa a rua ficar bréu, que importam os gatos no telhado e a guitarra a sangrar no meio de tintos e vielas, mulheres que cantam e se despem se da janela se avista a lua gorda e amarela a pingar dos uivos que me assustam beijos de lençóis de linho bordados de outras mãos que tremeram em noites idas os candeeiros de velas por todos os homens que se foram. Deixa-a quieta no negrume, envergonhada do dia e dos seios das colinas, das passadas correrías em que triste se deita cinza na calçada aparelhada de tanta dança vendida, pregão mouro de uma saudade na folha das amoreiras em que a água vem do rio e do rio vem o choro e do choro a esquina quebrada de uma rua sem morada.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

DE MIM PARA TI

De mim para ti há o espaço exacto para que o fôlego de um sacie o outro, os passos certos na música da contradança, os olhos nos olhos a encontrarem na mira do brilho o que é o espelho de se saber fazer feliz. De ti para mim não há distância, há um pleno que enche ajustado até sermos um e outro e depois um só, uma forma ovalada sem arestas, uma rima certa na palavra amor.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

UM MILHÃO

Lá ao longe o milhão, distante deste agora em que entrelaçamos como tranças estórias contadas e ouvidas na perfeição de nada se esperar e do tudo se receber se cava o maior oiro no espaço de respirar puro o verbo simples e fluido de se gostar do que se faz. Gosto de ti, gosto de ti e mesmo que o remate assim seja, como o eco repetido a novidade brilha pela reticência e pela exclamação, de todas as vezes um milhão de te gostar apenas ouvinte, reclinado nas minhas declinações, desperto ao meu contar.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

NO MUNDO DAS NUVENS

Em todas as pessoas há uma nuvem. Cheia, macia com cheiro de açúcar e vagem de baunilha. Uma para cada um, uma por todos os sonhos sejam os de menino, os de apaixonada ou do avô que se move na bengala. As nuvens são sacos de sonhos que vamos enchendo ao longo da vida, arrumando lá para o fundo mais junto ao céu os que realizámos. As nuvens não se gastam nem se esgotam quando subimos a montanha e mais perto delas sopramos os segredos arrumando-os juntinho dos sonhos. Choram, chovem, molham-nos para nos fazer lembrar que estão lá à espera de serem puxados por um fio invisivel que nos prende a um mundo cheiroso de coisas de encantar. Esse fio nunca se perde e no final quando se toca o azul trepamos por ele e voltamos a sonhar.

terça-feira, 29 de abril de 2008

DISTÂNCIA(S)

Podes dizer por favor, obrigado, até minha querida e chamar-me amor que das mãos e dos olhos leio a distãncia do som ao coração, juntas palavras, juntas tudo num saco sem fundo em que vasculhas ao calhas o atributo pendurado das etiquetas decoradas, colas uma e outra, depois recolhes tudo na mira do próximo uso e eu só quería que calasses o ruído cada vez maior desta fatalidade anunciada de quanto mais me chamas tua mais distante estás de mim.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

VERDES PRADOS

Eram prados vermelhos, um carmim-rubor de todas as batalhas e de todas as paixões que por ali se havíam deitado quer no leito de sangues vertidos quer no amor que fertilizara papoilas e de outras no oiro, espigas cambiadas de palha-cabelos de jovens que odoravam vidas de vida no zumbido falado dos dedos entrelaçados. Veio a ceifa, deita abaixo Estio, que da louca correría à madura jornada novo corpo lhe há-de despontar botões no caroço do nascer e se do corado há saudade no verde se renovam as histórias.

domingo, 27 de abril de 2008

OBRIGADO

Por ter nascido e saber ver e ler e escrever. Por conhecer o amor e também as dores de muitas espécies. O riso. O choro. A contemplação das coisas simples que nos abraçam todos os dias e fazem de mim quem sou, os outros que se cravam em mim e eu neles e a capacidade de deles crescer e descrever no verbo o que de mim lhes posso dar. Ver o silêncio e escutar a noite. Correr, dançar, voar em passos largos na viagem de um livro e na folha desbotada de palavras que me abrem carreiros na imaginação. Escolher, separar a vida da morte e a morte em vida, respirar sentires e bravios cavalos que disparam no coração ritmos para além de compassos da existência.

sábado, 26 de abril de 2008

PLANTAR (ESCREVER É PODER AMAR-TE)

Lembrei-me agora que se plantar uma semente por cada história que te dê em breve teremos uma floresta. Um tecto verde para nos abrigarmos da tempestade e da canícula a escaldar a pele. Há-de ser uma floresta cuidada de copas frondosas com muitos cambiantes de cor, uma brecha aqui e acolá a deixar passar um fio de luz como um foco num palco e hão-de chegar aves e também flores e frutos, nada em demasia tudo no exacto das palavras que for semeando à medida da colheita de tu as escutares. Nenhum fogo lhe há-de surgir que aqui a chama que se acende é a que tenho agora e no dia que as histórias se completarem num milhão e tu por fim adormeceres, a floresta há-de regressar à semente nas mãos de quem saiba plantar o verbo.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

SE DE ABRIL

Se de Abril eu escrevesse fá-lo-ía de Primaveras e brisas mornas, olhares verdes, coração acelerado de vermelho tinto de ensejo, multidões como mares de maré cheia, perguntas e mais perguntas até devassar as minhas interrogações fechadas em quartos sombrios como esqueletos do meu ser que abriguei nos livros forrados a papel de jornal sob a ameaça da calúnia e da destruição de quem os escreveu. Se de Abril eu escrevesse fá-lo-ía enfeitiçada pelo sabor do beijo, liberta de corpetes apertados junto ao peito disfarçando as palavras que sempre soube e mantive engolidas no silêncio de as ouvir no segredo. Se de Abril eu escrevesse faría um poema sem rima todo impresso na minha memória para um dia recordar que às Primaveras também se chamam acreditar.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

O RISO

De todas as artes a que mais custa e que mais fácil se despoleta, desencadeia e contagia, o gracejo rasgado e sonoro dos pulmões, da garganta, dos músculos da face e da barriga, do coração que se acelera e impulsiona como uma alavanca para uma vontade colectiva igual em todos os povos, signo, semiótica universal, tradução sem censura, dizem, timbre único aos homens.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O LIVRO

Abre-me e sufoca-me com o teu olhar. Devora-me aos pedacinhos, tritura cada bocado sentindo o suco que te espalho na boca ao tomares-me entre mãos carinhosamente, intenso no segurar das histórias que te verto por cada vez que me tiras a venda e me cegas à luz do dia, apaixonadamente, entrego-me, deixo que me vinques nas horas plenas de retorno ao mesmo sitio e me sublinhes o que de melhor te atiço na voracidade de prosseguires a descoberta de mim, lentamente, até ao final em que morno me fechas plácido e suspirando no regozijo da leitura.

terça-feira, 22 de abril de 2008

VIDA (IM)PERFEITA

Não quero que me adores, gosta-me como sou, imperfeita, mal acabada de virtudes no carácter defeituoso do bem e do mal, uma balança mal calibrada que tende a caír para o lado fácil das escolhas simples de ser feliz sem mais atavios, sem complicações de existência sobre a vida e sobre a morte, sem raciocinios longos da interrogação de estar aqui, agora e contigo. Estejamos, sejamos nós apenas, aproveitemos o tempo de sol, o da chuva e todos os instantes que não seguramos por não nos importarmos por encontrar neles uma banalidade que não nos merece. Não me adores, gosta-me nesta banalidade de ser simples e tua em todos os instantes que vão passando e se tornaram uma vida.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O SOM DA VIDA

Do rádio desprendem-se sons de notas antigas que lembram outras músicas, as que cantava quando menina, saltitando numa perna e noutra, as tranças balançadas no ritmo da felicidade e da despreocupação de saber que amanhã pode não haver música, apenas uns ruídos, gritos até.
Do rádio soltam-se notas que ondulam como as ondas do mar e se as cantarolar vai sentir o sal dos beijos daquele dia em que mulher aprendeu o amor na despreocupação de saber que amanhã há partidas e dores e lágrimas e o silêncio a entoar.
Do rádio liberta-se a nota grave de ter cantado tantas músicas, ter aprendido todos os agudos da vida, uma letra sabida na ponta da língua, uma melodia que um dia há-de ensinar.

domingo, 20 de abril de 2008

DE LÁ

Que será que há do outro lado? Do da terra, do da água, do do céu? Do outro lado de mim? E do lado para onde voam os pássaros assustados pelo estalo da espingarda ou das árvores cambadas pelo assobio do vento? Do lado da areia da praia e até mesmo do castelo feito pelas mãos das crianças que brincam enquanto os pais fecham os olhos ao sol pleno e tentam ver o que há do outro lado? E da noite que vem devagar... terá medo de saír do outro lado, o do dia e deitar-se no dia enquanto do dia se ergue na noite e perder-se do lado das estrelas e dos marinheiros que buscam o outro lado do mundo e este numa linha, muito fina, muito esticada do horizonte? Eu vejo essa linha. Será o horizonte o outro lado de mim?

sábado, 19 de abril de 2008

UM DIA...

Apetecía-me tanto que hoje fosse um dia qualquer. Fazíamos de conta que não nos conhecíamos, que éramos tão só um e um, perdidos no mundo à procura um do outro e que quando nos encontrássemos nem sequer ligávamos, nem sequer notávamos que não nos devíamos voltar a afastar e mesmo assim cada um seguía a sua vontade, talvez já incomodados pela troca de olhares, talvez já sabendo cá por dentro que mesmo que não fosse naquele dia num outro mas não muito distante, nos haveríamos de juntar. Por isso hoje apetece-me que seja um dia qualquer e sem fazer de conta de coisa nenhuma. Saber. Não te basta saber que um dia nos encontramos de novo?

sexta-feira, 18 de abril de 2008

O AMOR A ESCREVER

Depois que a tomava nas mãos batía a porta, arremessava-se para os fundos da casa, escondía-se atrás do tanque de lavagem no quintal e nem mesmo as abelhas a zumbirem à sua volta lhe tiravam os olhos cravados do envelope. Abría-o com muito cuidado para não rasgar o papel, às vezes a saliva dele babava demais e até prendía o sobrescrito ao papel tão fininho da carta. Vinha cheia, carregadinha de uma letra miuda com bolinhas a fazerem de pintas nos iis e os oos eram todos corações, perfeitos, muito pequeninos para caberem enfileirados e para que ela soubesse que aquilo não era uma carta. Era o amor a mandar saudades.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

ENTRAR&SAÍR

Acabaram-se os discos, as danças paradas, os sopros ao ouvido, o desejo na mão e até os olhos a ferirem o peito num bate-bate descompassado. Deixa a chave, a da porta e a do coração, fica por alugar um dia a quem queira ser feliz. Como vais passar as noites agora sem par e sem voz de retorno no pensamento alinhado do silêncio em que tudo se entendía como eterno e nada se quería para além das raízes infiltradas num chão certo e sereno, do copo bebido na marca dos lábios que o outro assinalava, nas mãos dadas a escutar a chuva a bater nos vidros. Não digas nada, não arrombes a porta por onde entraste franca, a receber-te. Deixa a chave mas antes de ires ensina-me como se fecha.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

SONHAR

Se do outro lado é onde moras vou até lá, subo colinas e atravesso o mar, enfrento perigos e durmo ao relento. Espera por mim, chego tarde mas apareço. Vê que até as folhas esvoaçam levando noticia de meus passos e nos novos ninhos de andorinhas há o presságio da minha chegada. Espera por mim, que chego mais velha e até cansada, mas nos teus olhos há a frescura que me dessedenta de tanto caminho rasgado pela vontade de te encontrar. Mais rápido te chega o que sonho, vai adiante, pede-te que esperes, eu vou no encalço e quando dos dois me achar à tua frente é tempo de acordares.

terça-feira, 15 de abril de 2008

A MONTANHA

Ao chegarem ao topo sentiram como o ar lhes empurrava os pulmões, arfavam, ríam também, as coxas e as canelas a arderem do esforço da escalada desde o sopé até ao alto. De quem tinha sido esta idéia louca de se aventurarem numa subida tão íngreme, de quem tinha sido a plenitude ao deixarem caír o olhar pelo mundo que à volta os rodeava, de quem tinha sido o primeiro grito e os ecos que lhe responderam igual e ainda as gargalhadas na comoção mal disfarçada de voltarem à infância quando tão grandes só lhes apetecía amarem-se como deuses poderosos de todo o universo?

segunda-feira, 14 de abril de 2008

RITUAIS

Ligou a luz do pequeno candeeiro do lado esquerdo da secretária, abriu as gavetas, cinco lápis, uma caneta de tinta permanente, as folhas acertadas num maço, a fumegar a chávena de café, já de asa lascada e o cigarro não fumado junto às beatas empilhadas no cinzeiro, o relógio de pulso liberto do braço estiraçado adiante, o gato na alcofa tufado, vai agora, é agora, tudo a postos, ajeita-se no cadeirão, traça o primeiro risco cinza sobre a folha, delimita cantos, ao miolo o ataque. Mas parou de imediato, que lhe falta o mais importante: o xaile que a aconchega nos ombros as palavras que tem junto ao peito.

domingo, 13 de abril de 2008

O VENDEDOR DE JORNAIS

Ainda mal rasga o dia já o assobio golpeia estridente a guita que abraça as folhas de jornais quentes e húmidas da noite deitada nas tintas e tapetes, calos nos dedos que não sentem o esticão ao cordel a separar letras, assim dói menos, de repente, talvez a orfandade das páginas exteriores atiradas ao vento não gemam o frio da noticia de mais sangue a tingir gordas que vendem melhor que a baixa de preços no trigo, mentiras, loas, boatos que se ondulam e se transformam no pregão quase mouro do grito que apela ao freguês.

sábado, 12 de abril de 2008

A (HISTÓRIA)

Talvez só a ti não te tenha contado uma história, uma qualquer que tantas vezes dizes ser tua e eu digo ser de todos, mas hoje e porque é hoje, esta história de entre um milhão há-de ser a tua e tu saberás nela a diferença das outras porque das outras todos temos e esta e unicamente esta é a minha e a tua. Não se conta.


(a nós)

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A VOZ

Era o homem mais feio que alguma vez vira de tão perto, calvo, um nariz semelhante a um bico de ave, os olhos pequeninos escondidos fundo por detrás das lentes grossas, uma fenda a servir de boca, orelhas descoladas do crâneo e uma ausência total de queixo que se diluía no pescoço papudo. No entanto, as mulheres envolvíam-se na sua companhia em sorrisos ternos e mãos juntas ao peito, traçavam pernas na posição de ficar um pouco mais, nadar naquela ambiência pastel em que parecíam figuras de quadros apanhadas num qualquer Sábado à tarde de Primaveras mornas. Não lhe vía encanto, olhava-o de longe e intrigava-se de onde surgía tanta harmonia. Um dia aventurou-se no perto e na voz que desfiava poemas com o sentimento do amante, sorriu, amparou o coração junto ao peito e do alheio fez-se quadro também.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

ROSAS DE HOLANDA

As mãozinhas espalmadas no vidro da vitrine embaciaram a visão gulosa dos bolos coloridos. Tanto creme, tanto doce, aquele forro acetinado no céu da boca, salivou, engoliu em seco, contou no bolso as moedas à solta dos dedos, adivinhar o custo, pagar todo o preço por um desejo de olhos fechados, lamber os beiços e encontrar a felicidade. Apontou, aquele, não, o outro de chocolate e com golpes que desvendam um creme firme cor-de-rosa, rosas de holanda, porque chamam rosas de holanda a um bolo que se assemelha a uma tulipa, que importa, há-de desfolhá-la até à base feita de uma espessa massa em que se trituram pedacinhos de chocolate e amêndoa. O delirio vem na ponta da pinça, os dedos seguros, olhos tortos para o tesouro, admiração, cheirar o amanteigado da forma cilindrica, encostar os lábios e sentir o frio levemente amargo do cacau, a ponta da lingua a desflorar o recheio rico. É agora. Agora abre a boca e trinca tataeado, sustém o respirar, dilata as papilas, um encontrão, escapa-se-lhe o instante e na bochecha inchada prova numa única vez o anseio de muitas vezes.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

NUA

Para não doer despía-se. Ficava nua à mercê de olhos, dentes e perguntas. Do falo não ligava, ignorava como parte do acordo que tinha consigo. Às vezes ficava a mirar-se guardada, muito bem dobrada respeitando vincos, pregas, pequenas costuras, fechos. Enquanto se dava abría a gaveta e sorría por se ver tão bem arrumada, limpa, perfumada de todas as coisas que ainda tinha da meninice e se mantinham na frescura do resguardo da alma. Do resto não ligava, podía apodrecer ali, maltratada e humilhada na arma viril, comida no fisico pela idade e pelo uso sem tino, espancada no apontar do dedo, nos adjectivos raivosos que lhe bolsavam no rosto sem a verem. Ela também não os vía. Olhava a sua alma e sorría. Por isso despía-se sempre antes da roupa.

terça-feira, 8 de abril de 2008

O QUE SE SABE

Não era isto que esperava. Não esperava pelo ramo de flores. Nem pelo colar de pérolas. Nem pelas horas a murcharem na solidão da casa demasiado grande para dois. Para um. Pelas desculpas beijadas a taparem-lhe a boca retirando o oxigénio da argumentação. Do ultimatum em segredo. Um dia destes... Um dia destes vai ser o dia igual ao de véspera e a todos os que se lhe seguirem que no coração mora uma casa demasiado grande para deixar de perdoar e até tentar esquecer o ramo de flores que se banha no choro escondido na almofada fria e que ampara o desejo do arrependimento nas horas em que sabe o que espera.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

SENSIBILIDADES

Por tudo e por coisa nenhuma choramingava, armava beicinho, molhava-lhe a vista por um cisco, por um filme, por conversa alheia, não comovia a ninguém tão pouco a ela mesma, que com o tempo achava-se enferma de algum furo no sacro lacrimal, deixava-se andar, deixava-se estar num passo de braços traçados sem consolo nem desconsolo, um fio ténue de emoção sem disparo do relógio interior, incompreensão pelas tempestades de riso alheias e pelos gritos desvairados da partida do soldado, tudo frágil, tudo mole, tudo choramingado. Até ao dia em que um eclipse fez do dia a noite e na escuridão tapada sentiu que a sua pequenez eram como as suas lágrimas, gotas de nada e no entanto alguém a havería de esperar para luz se fazer de novo.

domingo, 6 de abril de 2008

D.FOFA E SEU MARIDO

Conheci D.Fofa solteira, amiga de marinheiros, comida de mãos abertas e farta de festas no lombo, focinho prazenteiro nos olhos húmidos castanhos que sabem ver passadeiras no verde e parar no vermelho. D.Fofa acomoda-se nos cartões que o arrumador de carros de uma só perna lhe muda a cada chuvada que cai. D.Fofa é livre e altiva. D.Fofa cheira o ar e sabe as horas a que o perigo espreita. Tenho visto D.Fofa acompanhada, não sei como se chama o cão rafeiro que a acompanha, tão igual a ela que dificilmente pensei tratarem-se de dois até os ver juntos. D.Fofa e seu marido são inseparáveis, ela dorme ele vigia, repartem ossos e arroz de vésperas no apetite desejado das mãos gentis dos marinheiros, depois o marido lambe o focinho negro de D.Fofa, ela late, abanam as caudas felizes. Acho que se amam.

sábado, 5 de abril de 2008

TROVOADA

Não tenhas medo, não me deixes a mão, é só barulho, tenho medo, são as nuvens aos encontrões, mas as nuvens são de algodão, pois são, tenho medo, são as gargalhadas das nuvens, riem tão alto, para nós as ouvirmos, assustam-me, não tenhas medo, vêm cá abaixo, não, brincam no recreio lá ao alto, e aquilo, aquilo são relampagos, tenho medo, são luzes para as nuvens verem, é noite lá em cima, festejam, tanto barulho, como a tua festa de anos, têm velas, são os clarões que vês, não posso ir, não foste convidado, quero ir, não podes, então quando fizer anos não as quero na minha festa, está bem mas agora dá-me tu a mão. Tens medo?

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A SENTENÇA

Amanhã partes. Amanhã é o último dia. Amanhã deixas as manhãs e as noites. Amanhã largas o jejum, as dietas, as correrías, o fato cinzento, as contas por pagar, as dores de cabeça, o cumprimento forçado, a mulher e os filhos e o cão da vizinha que não te deixa dormir, a colega com quem sonhas erótico, o lugar de estacionamento, as férias e os fins de semana rápidos, a reforma, as viagens que nunca fizeste, a infância, a primeira vez. Reformulas. Regozijas. Renasces. E no acordar do pesadelo abraças-te, segurando o teu corpo à vida que vai passando.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

TELEPATIA

Pensa em mim e o telefone toca, perguntas como estou, estou bem mas nada digo, só abano a cabeça na felicidade muda de me teres ouvido chamar-te e de me chamares pelo meu nome e eu saber que é para mim que falas e perguntas e queres saber tudo e eu com tanta coisa para te contar nem consigo lembrar-me de nada importante para te dizer, só penso que tens que continuar a falar e a perguntar-me as coisas que desejei perguntasses e manter-me naquele som timido do nada que quer dizer tudo e tu até respondes como se esse silêncio da boca a sorrir viesse de dentro de mim em frases completas que te entrego em sim, quero, sei. Pensas em mim e eu sei-o.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

PARTIR & REGRESSAR

Depois de ti e das tuas mãos e da tua boca e dos teus sonhos não haverá outro, assim o dissera antes de tombar em novo tu, com novas mãos, com nova boca e com novos sonhos que o coração é cigano e precisa de sangrar o amor como uma bomba a ferrar para que funcione exacto e o fluido sirva de unguento ao desejo e ao bem-querer e ainda depois deste se gaste mais eus, mais mãos, mais bocas e mais sonhos, sempre novos, sempre últimos e derradeiros até à vinda de um outro e tantos mais quantos o coração permita amar e deixar ir e voltar a receber como o derradeiro, pois se na entrega está o viver no regresso está o amor.

terça-feira, 1 de abril de 2008

SHOCK TÉRMICO

Foi por causa do calor que entrou na pastelaria e pediu um copo de água. Sob as pás das ventoínhas sentiu os fios dos cabelos esvoaçaram ao de leve, o tempo pareceu abrandar, quase cerrou os olhos. Defronte os rebuçados coloridos, as bolachas, os biscoitos, tudo metodicamente arrumado como se a canícula não existisse e procurasse deliberadamente desmontar a ordem das coisas. Um gole de água, os bolos alinhados pela categoria de secos, com frutas, com cremes, deitados numa cama comum à devassa de todos. Rodou a cabeça, observou as pessoas amparadas nas palmas de mãos, cotovelos vincando as migalhas das torradas, paradas na conversa, um ralenti que parecía ondular as imagens pelo abafado. Depois notou numa mesa de canto um casal, um quadro vivo, segredavam, sorríam frescos. Ela acabou o copo de água, olhou-o, reconheceu-o, mais tarde ele entraría em casa, à sua mesa assentaría os cotovelos nas migalhas e falaría com ela de conversas paradas até se deitarem na mesma cama, devassa, tudo metodicamente certo e arrumado como se nunca tivesse acontecido aquele dia de calor e ela tivesse fugido para um copo de água que a gelou no sangue.

segunda-feira, 31 de março de 2008

GESTOS&PALAVRAS

Falou. Em silêncio. Apontou os indicadores ao canto dos olhos e repuxou oriental, notou as rugas fininhas a desapareceram na extensão da pele e mirou de um lado e outro. Falou. Em silêncio. Afunilou a boca num coraçãozinho desbotado apontando no queixo saído o disfarce dos vincos no pescoço ainda alto. Depois deitou a lingua de fora, observou-a e aos dentes e à campainha, fez ah longamente e engasgou-se. Suspirou. Em silêncio o espelho devolveu-lhe a imagem do que era. Gritou-lhe, tentou assustá-la na esperança daquele reflexo de rugas e ridulas e vincos e pregas e pequeninos papinhos se arredarem pela força do som. Nada falou. Silêncio. Os olhos envidraçaram-se. Ele chegou, abraçou-a pela cintura e de queixo apoiado no ombro dela, mirando-se aos dois nas cãs disse-lhe que ela era linda. Não falou. Sorriu.

domingo, 30 de março de 2008

ESCALADA

A medo, devagar, num crescendo, a fome controlada, já se perderam mãos e braços e até o coração latejante, agora vai de seguida o olhar que ninguém precisa de ver o caminho do que se quer e o relevo da pele arrepiada é guia bastante para seguir até ao topo e ficar por lá embrulhado nos cabelos e nos cheiros e na água da boca que quase se adivinha mas surpreende por ser tão esperada e tão bela, rastilhos nas curvas e covas quentes que mais quente se tornam nas dedadas calcadas e apertadas da tomada de cada bocado vencido, nada sacia, tudo aumenta na velocidade lenta do mundo a parar para deixar que os amantes se juntem.

sábado, 29 de março de 2008

O CANTOR

Nessa noite levantou todos, o palco pareceu-lhe maior, as luzes mais bonitas , os veludos das cortinas mais ricos. Nessa noite o seu fato perdeu o esgaçado de shows sem fim em que as palmas não acordaram os que dormíam, encheu-se de acetinado nas bandas e pediram encores de olhos marejados na emoção da voz que se prolongou para além dos acordes finais da banda e até no fosso a batuta suspendeu-se da ordem paralizada no timbre claro que ecoou sala dentro e voltou e rodeou como uma capa de mágico. Nessa noite soube onde pôr as mãos e o micofone não apitou o guincho supersticioso de mais uma fraude. Nessa noite despediu-se do palco e do animal que por lá deixou, à solta, recolhendo os bocados de anos que dera. Regressou ao camarim sem roupa de artista. Nessa noite levou o melhor abafo sobre os ombros nas palmas que para sempre lhe farão companhia. Já não se sente só.

sexta-feira, 28 de março de 2008

CRUZADISMO

Descobrira nas palavras cruzadas o escape do que o rodeava, um esconderijo para os olhos que se empatavam nos passageiros que seguíam na sua frente, assim evitava o rosto deste e daquele e ao mesmo tempo exercitava a mente ao invés de a perder nos joelhos macios da mulher que se sentava adiante e só de propósito para o perturbar. Desenhava as letras muito vincadamente, passando-lhe várias vezes o traço no mesmo sitio a carregar uma intenção, a certeza do que sabía sem erro. Tinha vezes que as fazía maquinalmente, uma musica de cor entoada nas três, quatro, seis letras, ara, tara, tâmara, medía o tempo do trajecto e a sua habilidade e rapidez sem consulta das soluções, tapava a esferográfica esborratada do acumulo de tinta e guardava apressado o livrinho companheiro marcado na folha completada. Encarcerava-se em cada quadradinho horizontal e isolava a vida nas verticais, caminhos sem saída perante as quadriculas negras.

quinta-feira, 27 de março de 2008

A FOLHA (ESCREVER É PODER AMAR-TE)

Pergunto-me se dormes e tão quieta ficas na mutez pálida que quase me envergonho de te espicaçar no fio condutor da tinta à minha veia, azuis que se casam, fluiem e animas-te, empolgas-me, extravazo no desenho de pontos e bolinhas, espaços em suspenso para que possas respirar e sempre disposta deixas que te tome e dilacere na alvura segredos inconfessáveis de como escrever é poder amar-te.

quarta-feira, 26 de março de 2008

SE

Tanto grito e mãos cerradas, negações e ameaças, acusações, dedos apontados e costas voltadas, peitos fechados nos braços traçados em cruz, uma pena a cumprir, revoltas e bandeiras brancas, motim de porta fechada, fotografias compostas a sorriso sepia, lá atrás ficou o que de si conheceram e não encontram mais, perderam num dia qualquer a aposta que fizeram e o que foi a jogo é agora fora de jogo, abominam o que sentiram na saudade do que queríam ter sido e perderam numa memória escura as palavras na confissão adiada do arrependimento.

terça-feira, 25 de março de 2008

ÉDEN

Por cada dia passado um tracinho em diagonal por cima do número do dia. Menos um, mais próximo dele, no fim-de-semana vão ao jardim, com sorte não chove, ouvem os metais no coreto e ele gentil oferece-lhe um sonho branco como uma nuvem na bola gigante de algodão doce, há-de roubar-lhe farripas só para lhas dar à boca e besuntar-lhe os lábios e o queixo e hão-de rir muito no braço dado tão bem comportado de um passeio publico, disfarçando à volta de árvores e folhagens olhadas de baixo o roçar da cintura fina pela mão aconchegada, colhe uma margarida junto ao aviso de proibido e profere frases feitas de flores para uma flor como um original que ela guardará para todo o sempre. Por cada segundo passado uma argolinha perfeita aprisionando tudo até ao próximo fim-de-semana.

segunda-feira, 24 de março de 2008

A PAPOILA

Apressou o passo, o salto entalado deixou o sapato na rectaguarda e cortou-lhe o ritmo já atrasado, praquejou, calçou-se arrastada até acomodar os pés à velocidade quase corrida, passinhos curtos na saia travada, amaldiçoou-se nos cinco minutos a mais na cama e no tempo que lhe fugía mais rápido do que o que precisava para entrar a horas. Viu o autocarro partir sem ela na troça de quase o alcançar, tombaram-lhe os ombros, a melena e a pose, duvidou no caminho de regresso a casa e esquecer o mau inicio. Prosseguiu o passo, abrandou, o cansaço na barriga das pernas trouxe-lhe a dormência da falta do pequeno-almoço, o olhar rente ao chão embaciou-lhe os óculos de sol e sentiu vontade de desaparecer. Depois, chorar. Por fim estacou-se, perguntou-se porque corría, porque se zangava consigo, com o mundo. Encheu o peito de ar e apeteceu-lhe dar um grito que lhe abrisse o peito. Reparou então, que no meio de um canteiro muito verde e aparado uma papoila solitária berrava o vermelho igual ao seu.

domingo, 23 de março de 2008

AMENDOAS

Gostava de todas. Das coloridas a pastel vía os tons de infante mas arrojava a aspereza nas torradas de tom sangrento, a lingua a puxar os grânulos areosos para logo de seguida se consolar nas reboludas licorosas enfeitadas no aparo tingido da mão de arte em quadros liliputianos ovalados. Lisas e espalmadas, brilhantes e enceradas trincava-lhes o verniz ora branco ora negro na pasta mole encostada ao céu da boca numa oração de olhos semi-cerrados ao confiteiro artesão que convertía o chocolate. Mas era no enjoo de tanto pecado que se punía nas verdes e aciduladas, água de saliva que a confessava. No final acabava a brincar com as de casca, a sentir-lhes sob a palma o veio que fecha o miolo, os furinhos que deixam respirar o coração que nelas se encerra como um esquife, libertava daquele aperto na gula de só mais uma, e enfartada nem ligava às origens do festim, a verdadeira e tão simples amendoa.

sábado, 22 de março de 2008

TANGO CARMIM

Já pus o meu vestido vermelho decotado e muito justo e nos pés os sapatos que sabem dançar, espero a tua rosa branca para enfeitar o meu ombro e o teu braço à minha roda para me cingir, nos lábios levo o brilho dos teus beijos e dos segredos que me hás-de sorrir noite fora encontro jóias que mais nenhuma tem. Ergui nos cabelos ao alto o pescoço que te ajeito no cheiro de te querer e quando o tango atacar seremos perfeitos como a rede das minhas meias que te enleiam nos dedos a vontade de me teres. Nego, nego só e apenas para que me peças e me puxes e até me arrastes na liga negra até ao escuro do salão onde brilham os teus olhos, rodopio, volteio, rondo-te em passo riscado o desafio e até a noite tombar o pano a rosa que era branca abrirá em carmim.

sexta-feira, 21 de março de 2008

NINAR

Canta para mim baixinho, docemente, afaga o caracol de cabelo por detrás da curva da orelha, passeia o teu dedo no meu nariz, na sobrancelha, alisa os vincos que me dão idades na testa muito preocupada de tanta coisa feia, olha a veia a latejar no caminho do pescoço, moras aí sabías, por isso te peço a ti, dá-me ninar, dá-me consolo, dá-me mimo, dá-me pequenino, torna-me grande nos teus braços de mundo inteiro, baloiça a minha nau no teu mar calmo e leva-me para além destes olhos que fecho.

quinta-feira, 20 de março de 2008

SONHOS DE AMOR

De tudo o que teve sempre foi pouco ou até mesmo nada que o que quis foi-lhe atirado aos bocados como se alimenta a fera na jaula. E ainda assim, aceitou-os, comeu tudo para não morrer na faminta interrogação da duvida de saber se sería aquele pedaço o do amor, se o rejeitasse por ter muito osso talvez nunca viesse a saber o gosto da saudade e do desejo. Tragou de pequenino e em largas dentadas, aproveitou sucos e nutrientes, nunca se fartou ou caiu no enjoo, sempre mais nem sempre o melhor, mas o sonho do grande, aquele, o especial, não traz rótulo, acabou a experimentar de tudo até sujar os beiços e num dia ainda com o brilho na busca do que a enchesse como iguaría deixou de limpar a boca às costas da mão, sorriu e teve a certeza que na próxima vida sería melhor.
(a Regina)

quarta-feira, 19 de março de 2008

SORRISOS EMPRESTADOS

Li-te por aí algures, no meio de neves e brancuras de sonhos, recordações tiradas a meio de sobressaltos na noite, faces que sempre foram tuas e eu nunca vi, até cheiros e pensamentos, coisas que se volatilizam para os outros, sorri, na tua distância e cumplicidade sorri, pateticamente como os simples que se agradam pelo paladar doce de matar saudades.

(a Iria)

terça-feira, 18 de março de 2008

O MEALHEIRO

Sacudiu, agitou, o som metálico lá dentro a chocalhar nas outras moedas, tontas de tanto movimento, algumas a saírem como linguas de fora, a lata amassada, o vermelho da cabine telefónica estalado pelos anos, ferrugem, muita, tanta, a pegar-se às mãos e à roupa, ainda algumas teimosas que se escondem pelos cantos e não sabem o caminho da ranhura. Agora é grande, aprendeu truques, sabe como esventrar o interior de segredos, enfia uma faca e apara no jeito a saída deslizante do circulo sonante que desce pela rampa improvisada, ilumina o olhar, passa a linguínha brilhante na satisfação dos lábios, abana, ainda soa qualquer coisa, perdeu-se o metálico, um som quente que não fere a velha lata do mealheiro, espreita, afila o olho à ranhura fina que nada lhe diz, sacode, vai de faca e preso no estilete aperta um cartão amarelecido que puxa ágil no dedos. Desembrulha, desdobra, desfaz os vincos de anos nos quadrados bem marcados do papel. Um caracol de cabelo louro empobrece o tom das moedas.

segunda-feira, 17 de março de 2008

DESTINO

De mim talvez um dia alguém se lembre de descobrir no meio de tantas linhas emaranhadas pelo passar dos anos a tricotá-las em cadernos e sebentas, em papéis de embrulho a flores da estação, em cantos de jornais picotados no folhear ou até mesmo no bilhete simples de uma viagem de eléctrico, pequenos pedaços do que fui e os junte como cartas separadas dos seus envelopes, adivinhando o envio e a morada.

domingo, 16 de março de 2008

SIMPLES

De todas as coisas que desejara todas atingira, umas de menor custo outras dadas, outras de peleja e com sabor condimentado. Do que quería agora já tudo fizera: cartas, sorrisos, flores e chocolates. Por isso não entendía que ela não lhe devolvesse mais que um obrigado, mas não posso aceitar, e ele murcho como o ramo pendurado, magicava que mulher era aquela que rejeitava o que outras gulosamente lhe cobiçavam nas mãos. Inventou-se de outro, soprou-lhe poemas ridiculos que pingavam saudades e ela nada, apenas o olhou e tombou a cabeça à procura do verdadeiro, quem és tu, perguntou. Desanimado, achou-se pobre, um conquistador barato que à força de ganhos nunca soubera o que de verdadeiro valor tivera atingido, tesouros sem brilho. Agarrou-lhe as mãos e confessado nos olhos baixos pediu-lhe que ela o ensinasse. Ela apontou-lhe o sol e o mar, conta-me uma história sem heróis.

sábado, 15 de março de 2008

TÃO CEDO, TÃO CEDO

É cedo, tão cedo para acordares e partires. Cedo demais para o que tivémos, para o que ainda podemos viver, para todos os gritos e risos e silêncios, e as mãos dadas e até as costas voltadas, que de todos esses tempos vem a harmonia dos ritmos, o compasso certo de dois. É cedo, tão cedo para baixares os braços e desistir da luta que mal ainda se percebe o troar dos canhões ou se avista a bandeira branca. É cedo demais para fazeres do romper uma noite às avessas, que da madrugada se encontra o meio caminho entre o dia e a escuridão. É cedo mas tão cedo e tão breve este estar que quase sinto que tarda o teu chegar.

sexta-feira, 14 de março de 2008

CANTATA

Gosto de te seduzir na moleza do caminhar trepado dedo a dedo até atingir no mento o rasgo de polpa doce e húmida que apanho como se fosse minha e de manjar tomar tudo na gula nunca satisfeita de quem quer tudo, sempre tudo e mais e melhor, mais apurada esta pimenta que te salpico no meu olhar, desejo do fogo da ardência, do radioso de te saber domado quando pensas que me domaste.

quinta-feira, 13 de março de 2008

EXPLOSÃO DE TI

O que dela era pegada envasada reconstruiu-se da matéria dele: quanto mais ele a beijava mais ela sorvía daquele sémen, uma dor quase rasgada no nascimento parido dele. Completou-se na integra quando a palma lhe pousou no mecanismo traiçoeiro que bombeava para as veias sentindo ali a um toque a explosão eminente. Viu-o à sua frente desfalecer em lama, deixou-o mesmo abismar-se em si mesmo e quando já só restava um contorno e cacos de um vaso de transplante deixou-se caír sobre a terra, cobriu-se com as bátegas de água e copulou-o. Ai voltaram a ser dois, cada um renascido no outro. Gemeram as raízes na pele, olharam-se e deram as mãos.

quarta-feira, 12 de março de 2008

MIMETIZAR

Um raio. Outro amarelo na noite parda. Hoje não há azul. Só uma fome violácea que fareja a trovoada, aguarda a água que há-de tombar em bátegas pesadas como cabrestos sobre o pescoço, aliviando-a do jugo do dia, vestindo-a da melhor forma, modelada, molhada, escorregadía como um cetim frio que se aconchega à intimidade. Mais um raio como arame farpado. Rasgou-lhe a porta de saída, o nariz adiantado ao cheiro de pólvora seca afrodisiaca-lhe no palato o gosto da terra que há-de pingada empapar as suas pegadas e nenhum rasto lhe poderão seguir. Nos primeiros chius da água o tambor do trovão. Já nada ouve, solta, corrida no relento liquido propaga-se a imagem como uma fotografia premida no dedo contínuo, onde começou termina como um eco, uma pedrada num lago ressaltada na habilidade do atirador. Novo raio. Encontrou-se. Desaparecida para os outros. Jaz numa poça. Ainda um último risco no negrume que tombou repentino e inquieto, um brilho de olhos num mancha espelhada.

terça-feira, 11 de março de 2008

ENGANOS

Não quero, já sei como é e não quero voltar a sentir -me tonta, doente de tanto doer por dentro e gostar dessa dor quente que abrasa no peito e no céu da boca desejos insolúveis que me tiram o chão e o tino cuspindo-me reduzida num olhar todo apertado, fazer de dois um, fazer de mim o outro ou o outro em mim e baralhar-me no diluír de quem é quem e só existir por ser outra, renovada na paixão enaltecida do dar, dar e sempre mais e sempre dar-se num avesso perfeito até sentir que o mundo é um fruto que se come na saciedade de amar e rir mais e muito e especial é-se na condição silenciada da entrega. Já sei como é, não quero que doa outra vez.

segunda-feira, 10 de março de 2008

PERDI-ME

Acho-te triste, curvado, parece que minguaste, não te vejo o queixo apontado à estrada desempoeirado das incertezas que sujam os outros e a ti nunca te tiraram o ar.
Acho-te tombado, quase caído, vertes a seco as lágrimas que lavaríam essa nódoa que cheiro na tua alma. Que tens tu que te verga o sorriso e envelhece o brilho que sempre me cegou guiando nas estrelas o destino da busca, esse tesouro sem peso e que te cobre como um rei?
Mas quando estendes as mãos e calado nada vês li nelas a tua sina. Esqueceste-te de sonhar.

domingo, 9 de março de 2008

ACTOS

De cada vez que ela por ele se deslizava, apertava os lábios, os olhos, as mãos como se sentisse dor. Caminhava-o, cego, perdido, pedindo o fim breve para logo se atrasar no repente estático que ela obrigava. Impulha-lhe textos sussurados ao ouvido, prendía-lhe a tensão nas palavras murmuradas sem pontos finais, parágrafos completos de outros mundos e ele cativado na narrativa perdía-se para outro rumo. E lá voltava, salgada do mar dele, arranhando-lhe o torso na areia vincada pelos joelhos dela, apertendo-o nas coxas, amazonicamente fantasiada de contra-luz. A indignação dele arremessava-a para trás, o cabelo molhado chicoteando a pressa da meta. Domava-a então, o sabor do sangue no lábio queimado de lhe ser dele.

sábado, 8 de março de 2008

O LUME DO OLHAR

E veio o vento guardá-los na areia serpenteada de olhares famintos de lhes serem iguais.
Que já muita cópia havíam tentado mas no ensaio de fogo do olhar falhara o mais simples: amarem-se.
É preciso que os olhos se amem, se forniquem até à lágrima para que se sinta na pele fundida da cobra todos os anéis da alma. Sem esse lampejo, dessa acendalha resta apenas o humano.

sexta-feira, 7 de março de 2008

LEMBRAR

Por todo o dia se sentira triste, um pesar na alma e nos ombros, a face curvada sobre o coração a espreitar se ele estaría mesmo lá, se ainda batía. Uma melancolia vestiu-a. Sentiu saudades, não soube de quê, de quem, tentou chorar no alivio dessa carga que lhe pesava mas não encontrou motivo nem alento para expurgar o que a incomodava e tão pouco lhe sabía a razão. Parecía esperar pelo que desconhecía, talvez um raio de sol talvez a purificação da chuva. Mas quando as mãos na caixa do correio tocaram o postal ilustrado de uma cidade de mil cores os olhos sorriram, olá, estou a pensar em ti neste momento em que te escrevo.

quinta-feira, 6 de março de 2008

AS MÃOS, OS OLHOS, A BOCA

Primeiro que tudo amor, as mãos. As mãos apertadas nas minhas, a polpa dos teus dedos a sentir as costas das minhas mãos que estas se aquecem no miolo das tuas. Depois o olhar, parado no teu até sentir arder por dentro e no sal que esta água de te querer pode parecer brilhar como uma lágrima mas não o é. É sentir-te anunciado. E na boca amor, na boca que quero que demores a chegar à minha para que quando a tingires de beijos nos toque a nós, por dentro, na garganta, que este nó que engulo é apenas amor, amor.

quarta-feira, 5 de março de 2008

COMO UM CONTRATO

Dividíam cama, mesa e salário. Espaços também. Dividíam diálogos não interrompendo o outro e tão pouco discordando. Davam beijos no rosto pela manhã e à despedida da noite. Aceitavam a gordura e a calvicie. Mas nunca revelaram que tinham sonhos e ânsias e vontades e desejos e gostos e desgostos. Quem os visse chamavam-lhe o casal perfeito.

terça-feira, 4 de março de 2008

A PRIMAVERA HÁ-DE CHEGAR

Que saudades, anda abraça-me, dá-me aquele gosto de te sentir tão perto de mim que quase sinto o teu coração a empurrar o meu, tenho frio, aquece-me, aperta-me, esconde-me dentro do teu casaco e leva-me contigo, promete que a Primavera ainda há-de chegar, mesmo que chova e eu ainda não tenha visto uma andorinha sequer a anunciar-me o tempo novo, mesmo que a Primavera seja só uma estação que ficou perdida lá para trás nos tempos da minha infância e tu me fales dela como uma história que inventaste para me distraír das saudades que te tenho. Conta-me de flores e árvores e pássaros e fruta que chega, sumo que me agua na memória de os não ver há tempo tempo, quase tanto tempo como aquele em que te esperei.

segunda-feira, 3 de março de 2008

A ORDEM DO CAOS

Há sempre um sentido em todas as coisas que acontecem na vida. Mesmo que não os aceitemos por não os entender. Até os que nos magoam, ferem e ainda os que nos violentam. Andamos no sentido de uma bola que gira e nós dentro dessa esfera, umas vezes de pé outras de pino, de olhos abertos para não entontecer ou cerrados com muita força porque o estomago se embrulha. Queremos à força repudiar o que nos acerta no aleijão mas a inevitabilidade do arremesso acaba por deixar cicatriz e só muitos anos depois entendemos a glória desse momento ou a pequenez da nossa dor perante a dos outros. Agarramos a mãos cheias o que achamos ser a felicidade plena e perpétua e no entanto, que falibilidade essa ténue coisa invisivel que num sopro ou num desacerto de opinião se esfuma como se nunca estivesse estado presente.

domingo, 2 de março de 2008

O AMOLADOR

Ouço-o lá fora. Mas não ouço a chuva ou os pingos no varandim a estalarem naquele som de metal que faz música. Agora deu-me um frio repentino, uma sensação de noite que me encolhe entre cobertas e roçar a face no algodão macio da almofada é tão mais confortável que estar lá fora. Daqui a pouco vai chover que já ouvi o amolador e embora não lhe chame os serviços ou vá a correr à janela vê-lo passar, sei-o de lado amparado na bicicleta ferrugenta, mãos no guiador, de quando em vez leva o apito espalmado aos beiços e sopra longo e depois rápido. Cheira-me a desgraça sei lá porquê, a tragédia que não conseguirei evitar se não me levantar depressa desta cama e o enxotar para longe da minha varanda e das minhas janelas, receio que as begónias murchem naquele sonoro prenúncio de fatalidade. Calou-se. Já chove? Onde será que rola o amolador, sem cama onde se abrigar nem varandas nem janelas com begónias vermelhas onde possa espreitar fregueses que o chamam de tesouras e facas, um golpe só e queda-se o apito longo e rápido do amolador. Ouço uma moeda que caiu ao chão. Aconchego-me. O amolador há-de voltar, triste, assobiado como um vento numa casa abandonada. Por agora chove, ouço o varandim a chamar a chuva, os pedais da bicicleta partem rápido, adeus amolador.

sábado, 1 de março de 2008

NO ESCURO

Não era só ela que respirava aquele nocturno, também os móveis estalavam o suspiro fundo que só é permitido quando o escuro avança no privado da intimidade e os demais objectos ganham vida movendo-se lentos e agigantados na pretensão de saber se tudo dorme. Ela não dorme, abre muito os olhos e ouve o coração a bater forte, talvez desperte paredes e estas deixem de escorrer as horas amareladas quando o sono não chega e se cavalga no pensamento veloz em caminhos tão diferentes como a saudade e a lembrança ou a voz de alguém amigo e a lonjura ou ainda nos amores que já passaram e o gosto dos seus beijos. Encolhe-se na roupa até ao queixo, esconde-se do que não vê, o frio subito que se acomoda no pescoço e na barriga é o medo de não perceber o que a rodeia, monstros que a espreitam se desatenta adormece no cansaço. Talvez se esticar a mão atenda a esta capa azul fundo que paira sobre o quarto mas sabe-se lá o que a aguarda por baixo da cama, aninhado e expectante, num pulo caça-a e sem força para resistir deixar-se-á levar para todo o sempre para o escuro. Adormece.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

QUANTAS?

Já te contei quantas histórias? Muitas e tantas ainda para te inventar, mais de mil noites a sonhar o que te vou dizer, manter-te acordado e preso à minha lingua que desata sons em palavras seguidas sem paragens para achar fios que unam elos e estes se façam correntes de histórias pequenas como cerejas que se debicam no gosto nunca satisfeito até avermelharem a vontade de se ouvir mais e eu tenho mais, tenho todas as que tu quiseres ouvir mesmo que no receio me perguntes sempre se já acabou e eu como resposta apenas te conto outra e tu ficas mais um pouco.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

LIGA-ME

Trim, trim diz o telefone e eu digo és tu e tu dizes olá, soa a tua voz na melodia do sorriso que tombo de lado, cabeça encostada à tua boca que me pergunta como estou, estou a ouvir-te, a matar um pouco desta saudade e a deixar o coração bombear mais querer, descompassado nas tuas palavras que peço para repetir apenas no capricho de as ouvir uma e outra vez, que entender entendi-as à primeira mas quero tanto ouvir-te dizer que te lembraste de mim, que hoje não te saio da cabeça e que importante mesmo é saber que eu estou aqui, tu aí a dizer fala, fala mais para eu te guardar no peito e na memória e levar esse som e essas frases que reticentemente entrecortamos no riso de se ficar feliz mas também no adivinhar, na esperança de hoje te ouvir dizer e tu me escutares o que guardamos para declarar um ao outro quando juntos estivermos e até lá mando-te beijos, muitos e tu um só, especial como uma única flor que se oferece.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

INFANTIL (OU NÃO)

Se um dia te perderes põe as mãos em concha e sopra, não precisas chamar o meu nome, irei ao teu encontro assim que a brisa me fizer chegar o teu hálito. Eu desenho um arco-íris para te servir de estrada, basta que tragas os sonhos eu puxo as nuvens para descansares depois da caminhada. Não estás sózinho nem perdido, o meu coração orienta-te como uma bussola marcada norte e tão mais forte o ouças mais perto estarás de mim. Só tens de acreditar, mesmo que isto pareça uma história de crianças ou uma invenção demente de quem te quer ver sorrir e te entretém nas palavras como o vicio de quem ama.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O CHEFE

Jantar bem servido e bem regado, muita conversa e risos, palmas aquando da entrada dele, abraços, palmadas fortes sobre as espáduas no tom de ser cá dos nossos, apertos de mão prolongados e protegidos com a outra, tossicados pelo momento solene e alguma emoção que não transborde na lágrima pois isto é coisa de homens e quem tanto deu e por tanto tempo só merece que todos se comportem à altura. O relógio com a gravação datada e agradecimento ao chefe culmina com a festa de sexta-feira, todos querem ir à sua vida, faltam as palavras deste a louvar o esforço sempre desmedido de todos e o quanto aprendeu tornando-o num homem melhor. Gritam-se apoiado, boa, uma ou outra gargalhada que o discurso vem ensaiado há muito e alguma brejeirice calha sempre bem para aliviar o momento e prender a atenção dos que já se perguntam onde tomar um copo e ver umas gajas pela esticada da noite. Vai-se este e o outro que ocupa o seu lugar é tão canalha quanto este o foi, mas sempre se há-de achar o que se foi bem melhor do que este alguma vez será. Até ser a vez deste também partir e ser substituído por outro.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

GRITOS AO VENTO

Há uma ira escondida dentro do peito que a empurra como uma mola de um mecanismo pronto a ser activado. A raiva alojada mistura-se com os diferentes estádios que vão desde o punho fechado até ao convulsivo do choro, da fala disparada até ao silêncio pantanoso e tudo mina, tudo infecta, tudo alastra por si e a amarga na boca e nos olhos mas muito mais no sentir-se devorada neste mundo que a engole. Revolta-se, agita-se, esbraceja e abana a cabeça, abre as goelas ao universo e berra, tanto que a voz lhe escapa ao vento. Sente-se calma num repente, ouve o mar e o piar triste das gaivotas, não está sózinha.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

COLORIR (É PODER AMAR-TE)

Desenfreada, a ânsia na ponta dos dedos, os olhos vivos, a ponta da língua no afã da busca: Onde parava o maldito cartão? Abría e fechava gavetas, voltava a abri-las, remexía do fundo para o topo, deslizava papéis, fitas de embrulho, fotografias de cantos quebrados e nada. Começou a sentir-se desesperada e até incerta quanto à existência real de tal cartão, talvez uma partida da memória, talvez nunca tivesse existido... Olhou a gaveta desarrumada e empurrou à bruta os papéis para o seu interior, um teimoso não se acamava junto aos outros e impedía a gaveta de voltar ao seu nicho. Puxou o papel tingido de amarelo, vários vincos e dobras diminuíam-lhe o tamanho, olhou-o e fez contas a quantos anos tería aquele desenho formado de riscos tortos e bolas a fazer de sóis e flores e cabeças juntas: uma dela outra do seu principe encantado. Ao canto em cima o astro-rei, único rabisco colorido a amarelo forte como oiro. Sorriu, havía encontrado o seu principe nesta vida. Procurou os seus lápis de tons fortes e esquecida do cartão coloriu as duas figurinhas juntas e ainda as flores que salpicavam o seu desenho de infância.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

DECIDIR

Fechou as malas e encostou-as no canto do quarto. Depois tomou banho e vestiu-se. Aprumou a mão no eyeliner e no baton. Sentou-se à espera dele. Quando ele chegasse ela dir-lhe-ía que não quería mais aquela vida para ela e partiria de vez. Que falassem dela e do abandono do lar, da vida boa que largava com empregada e tudo, do marido garboso e bem falante como poucas tinham. Mas ela trocava isso tudo por uma noite dormida ao lado dele, sem esperar que o som do carro a chegar lhe dissesse que eram quatro da madrugada ou no virar das peças de roupa ao avesso o estomâgo lhe voltasse ao contrário por descobrir uma carteira de fósforos de uma casa da noite. Correu os olhos pela sala e decorou cada objecto pousado sobre os móveis, a cor dos cortinados, a maciez do estofado do maple, a caixa de costura deixando o bordado espreitar uma bainha italiana de fios contados. O bébé chorou. Ela despertou da sua letargia e acorreu-lhe, sossegou-lhe o pesadelo, limpou o baton às costas da mão e beijou-lhe a testa quente sussurando-lhe já passou. Depois foi ao quarto e fez escorregar as malas para debaixo da cama.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

EVOLUÇÃO

Afirmas-te como um romântico e sorris como se isso fosse defeito ou pecado a esconder, digo-te eu que aprecio-o, envergonhas-te a sentires que és coisa fora de moda mas sempre te repito que a candura dos gestos e o doce do olhar nunca enjoam, nada de embaraços, para quê desprezar o movimento das mãos no oculto de bolsos se eu até sou amante de mãos, dedos, rasgos profanos que escaldam o corpo e atingem cá dentro e nas palavras, tantas palavras suaves que tu sabes deslizar devagar, a sentir se eu sinto que queres que eu sinta. Claro. Limpido na forma como dizes que me queres sem seres o óbvio, muito mais subtil e brutal o teu olhar que nos olha já a dois, a um. E afinal nem saímos daqui, tomamos café como dois amigos que trocam episódios, apenas eu, apenas tu sabemos o que se passa.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

REBUÇADOS

Mais uma madrugada recolhida nas notas amachucadas no fundo da bolsa coberta de lantejoulas vermelhas, pequena, capaz o suficiente para esconder o baton de cor ameixa, a protecção fina, alguns cigarros soltos, a chave de casa e rebuçados de fruta. Chupava-os na amargura pós-venda, enquanto endireitava as meias de renda negra que nunca tirava para os clientes e porque assim poupava tempo na partida e enganava a fome como houvera enganado o freguês baboso do muito amor negociado. Guardava os papéis de celofane e ao nascer do dia no regresso manco a casa somava-os fazendo uma contabilidade de quantos havía de limão e quantos de violeta, puxava do palato e atribuía a cada dinheiro esgalhado um sabor. Penalizava-se entre cores e prometía-se na noite seguinte mais nenhum contar.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

FLASHBACK

Abrandou o passo e mirou-a, ruína de anos e de anos sem hábito de vida, até a aldraba de mão fechada enferrujara encostada à porta descascada de tinta verde-água que fora trespasse para o pátio onde brincara, correra e tantas vezes caíra, cordas cantadas no ritmo batido no chão, folhos de saias sobre saias que saltavam ao som da voz na lenga-lenga imitada de tabuadas perdidas e laçarotes engomados em tranças apertadas pela serviçal de olhos doces que a chamava de minha menina e lustrava no peito do avental a maçã pecadora que ao intervalo da escola lhe havía de clarificar a voz para gritar pelas outras de cabra-cega. Abrandou o passo, firmou-se na bengala encastoada a prata.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

RASTO

Perderes-te de mim não acontecerá jamais, para qualquer lado onde vás tens-me contigo, as memórias de cervejas batidas no brinde a muitos anos e até mesmo o tamborilar na mesa a entrecortar as palavras seguidas que me fazías recitar-te por força de me gostares apenas de me ouvir, e eu falava, falava sem parar e sem gaguejar pois escrevera o texto dentro de mim na vontade que te tinha em que me olhasses mantendo-me despida de outros atavios que não fossemos nós os dois. Tu acreditavas, pela primeira vez acreditavas que a felicidade não era coisa de outros, estava ali ao nosso dispôr, nas nossas mãos que enredavam segredos que só deixávamos gotejar com medo de nos sujarmos. Assustaste-te, demasiado grande, enorme, imenso este sentir, fugiste de ti. De mim não: as minhas palavras vão sempre seguir-te para onde quer que vás.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

COGITUM

Do bafo frio e húmido do nevoeiro branco não distinguía contornos, apenas manchas que sabía serem pontes, viadutos e até o rio, de quando em vez as luzes vermelhas nas traseiras dos automóveis incendiavam-se e davam-lhe pontos de referência. Abeirou-se da extremidade do muro do terraço e olhou lá para o fundo, um tapete fofo como claras batidas em castelo que escondíam o negrume desbotado do asfalto. Sabía que era alto mas agora parecía convidá-la a descer rápido até à rua, andar, desaparecer no meio do nevoeiro que lhe encaracolava os cabelos, uma aventura que lhe fizesse esquecer a ausência e a imensidão do mundo quando se está só e se tem pensamentos tão bizarros como este.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

DESSE LADO

Ouves tu o mesmo que eu? Vês daí a lua gorda e amarela lá no alto, uma dedada no azul escuro a guiar barcos e namorados? Se eu daqui soprar sentirás o meu hálito? Ou pensarás que é a brisa da noite quando no Estio abres portadas e deixas o fumo do teu cigarro subir a direito e depois embrulhar-se num rodopio porque te perdes nas asas das cigarras a esfregarem-se atraíndo outras no canto zumbideiro que nos deixa zonzos? E se eu gritar a plenos pulmões o teu nome chegarás mais perto para me ouvires sussurrar? Irá bater o teu coração ao mesmo compasso descompassado do meu? Mesmo estando tu do outro lado do mundo?

sábado, 16 de fevereiro de 2008

PALAVRAS ESCRITAS

Sossegou-a no embalo das palavras. Ela esperava-as, precisava delas para dobrar a noite e afugentar os pesadelos. Chegavam num embrulho de papel escuro atadas num fio que já dera serventía mais prosaica. Mesmo assim ela passava as mãos, sentía as engelhas que ele fizera no desajeito das dobras e chegava-se mais a ele. Alisada a folha ao plano, atava os cabelos no fio do embrulho, um pendente de lado caído sobre o ombro que lhe permitía afastar da vista tudo o que não fossem as palavras. As primeiras linhas eram lidas de pé, a solenidade do acto impedía-lhe tempos perdidos a buscar assento e só depois, à medida que as frases lhe cavavam nos olhos a paisagem enviada procurava o chão como ligação à terra e para não perder o norte.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

AS ROSAS FAZEM DOER

Assinou a entrega e encostou o ramo ao peito e ao nariz para sentir o aroma, mas do vermelho das rosas nada exalou. Sorriu pelo encanto do gesto, uma surpresa antes do encontro. Procurou um cartão e descobriu na letra feita à pressa um lamento formal mas impossível ir. Pendurou o bouquet pelo braço, as rosas escorrendo o carmim para o chão encerado de fresco à espera de outros passos muito colados aos seus. Arrastou-se até à cadeira e ficou sem força nas costas, uma espinha caída sobre as ancas avançadas que esperavam outras no encaixe das suas. Atirou sem perdão as flores apertadas numa fita rosa muito brilhante e larga para cima da mesa, achou-as logo murchas, as pontas queimadas, um vermelho seco sem sangue que lhe desse alma. Descalçou-se e apertou cada pé de rosa entre os dedos, depois as pétalas arrancando-as dobradas e sem resistência. Sentiu-se faminta daquele amor ausente. Comeu as rosas à dentada enchendo a boca, sobrando-lhe o vermelho a tingir os lábios e nos dedos picados pelos espinhos encontrou alivio para a dor de dentro.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

DIZ-ME, PEÇO-TE

Fico nesta graça depois de me dizeres que me amas... Mesmo que só o digas porque to peço. Sabe-me bem ouvir-te dizer-me essa palavra... Mesmo que o digas sempre no mesmo tom, no mesmo disparo automático de quem mete uma moeda na máquina e lhe sai o brinde. Diz-me que me amas, amo-te. Aninho-me em ti, perdida nos teus braços, de olhos fechados a enganar-me que não to pedi e sonhando que mo disseste porque o sentías tanto, tanto e precisavas de o dizer vezes sem conta para que me lembrasse sempre e tivesse a certeza dessa palavra soletrada aos pedacinhos a encher-me de uma felicidade liquida que me escorre por dentro e me imuniza de outros males. Se não te peço nada me dizes. Nem mesmo o teu olhar me sussurra que o possas sentir e que por pudor da imensidão da palavra a guardas para nós. Diz-me que me amas, talvez à força de o repetires venhas a querer usá-la, saboreá-la no acto voluntário de ma ofereceres sem eu estar à espera, surpreendida pela magia de um verbo tão pequenino me fazer tão grande.
Amo-te digo eu e volto a pedir-te que me repitas no eco enganoso e continuado. Tenho medo de um dia não te pedir por já não precisar e tu quedo, nem notes que já não te amo.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

AGORA É A TUA VEZ

Conta-me uma história, inventa qualquer coisa, quero ouvir-te, desta vez é a tua vez de me encantares nas palavras que me queiras dar, não quero ser eu a oferecer-te sonhos e baladas e princesas e dragões, fala-me de tudo o que me faça sorrir e até molhar os olhos pela candura com que falas nas pausas, no arquear das sobrancelhas, nos gestos das mãos que acompanham o desenrolar da tua voz a pôr pontos de interrogação na boca de quem fala e vive através de ti e também de mim que te bebo. Contas-me uma história, uma só que seja e eu guardo-a mas promete que esta é só para mim para mais ninguém, que nunca a vais repetir a mais ninguém que histórias de encantar são só e isso mesmo, sermos raros nas palavras que recebemos.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

BRANCAS

Encolheu-se perante a imensidão do branco da folha, quase lhe parecía ferir os olhos, afastava-lhe a mão armada, repelía o negro da tinta. Sabía o que escrever mas agora perante a solenidade do acto o inicio parecía um já fim anunciado e as frases desorganizavam-se no contexto e na intenção: o que quería dizer afinal? Entenderíam o que quería transmitir? Mas essa era aflição segunda que da primeira ainda nem se tinha visto um traço, um esboço sequer que corrigido a riscos vincados lhe apagasse a malformação do verbo parido, uma emenda ou retrocesso para uma melhoría do vocal descrito. Amachucou a folha virgem, fez pontaria ao cesto e errou o alvo largo de boca aberta. Dispôs uma nova tão alva quanto a primeira, recolheu-lhe uma pestana caída, curva e negra, uma vírgula sem texto a guarnecer e na prensa dos dedos tomou um lápis e desenhou uns olhos que o fitassem apenas para não se sentir tão só.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

GONE WITH THE WIND

Nunca se perguntara por que chorava, copiosamente, uma torrente de lágrimas a debulhar o nó apertado que se formava no peito e lhe subia sufocado até à garganta. Turvava-se no celulóide como imagens vistas através de vidraças gotejadas e sentía o arrepio das personagens na falta do seu próprio filme. Decorara falas e agarrara o frou-frou das saias longas e armadas, imaginara-se Scarlett a manejar o chicote e arredava o desconsolo do abandono que sofrera. Nessa altura não chorara, não sentira nós nem apertos nem saudades nem a vontade de beijar como agora acontecía com Red, ali no ecrã, plano, liso numa única superficie, mas tão previsivel, tão constantemente sabedora dos seus passos que nenhum sobressalto a atiraría para outra dimensão senão a da sétima arte. Que a do amor tinha-se-lhe escapado como o vento.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

MICRO-VIDA

Desperdiçou-se em coisas pequenas, ligou muito aos detalhes e a concepção da vista ampla rasgada na imensidão da paisagem perdera-se. Quando a quis achar de novo tinha perdido o jeito do alcance no todo, nas manchas de cor, na composição harmoniosa que só a distância oferece e no esforço de reencontrar essa habilidade detinha-se no pormenor, num micro universo recortado destacando retalhos que de per si nenhum valor acrescía ao sentido da vida.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A VIÚVA

Das lágrimas que teve o rio secou, deixou-lhe um vinco cinzento a combinar com o luto e as mãos enganchadas uma na outra, já perdeu as outras, as que se lhe davam na noite branca de segredos e amores eternos e lhe oferecíam coragem nos momentos de medo. Deixou de ter medo, deixou de ter amor, vai tudo a enterrar bem fundo sob a terra castanha e quando lhe pedirem para pôr a açucena pastel há-de sentir nas mãos a força para escavar e salvá-lo, uma vontade negada, tão pouco a flor lhe pode plantar. Puxou o lenço negro aos olhos, não quer que a vejam a sorrir, ouve-lhe o riso ainda fresco a ecoar, um véu leve que a aconchega na memória, segura o terço, desfia os anos contados como vidas, volta a contar, agora por si que a sua também vai no esquife.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

PASSEIA-TE EM MIM

Se hoje formos passear e me deres a mão, o braço balouçado na alegria infantil de ombro a ombro rasgarmos o sol, tu e eu eu e tu, os dois num riso domingueiro, assistir às flores beijadas por um abelha que me faz gritar, não me digas para onde me levas, leva-me só. Se te fizer perguntas não me reveles nada, prossegue caminho, enlaça-me a cintura para eu saber que te confio, afasta-me o cabelo da testa e aponta-me o cheiro da maresia nos lábios que se colam aos meus. Se eu parar puxa por mim, prende-me pelos braços e carrega-me às costas, assobia um trinado, eu finjo que sou pássaro e até voo. E quando chegarmos vou precisar de um abraço, empoleirar-me nos bicos dos pés e segredar-te ao ouvido passeia-te em mim.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

FASES

Esta noite não lhe digam nada que se dobra sobre si mesma, encaracola-se, as pontas tocando o que de extremos foi, míngua na plenitude e mirra na luz, abriga-se no manto azul do veludo nocturno e tira folga. Lá no alto mira a lua, um C ao contrário como o que lhe vai por dentro, um avesso que serve de direito na dor da solidão. Pena que o coração nunca tire folga.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

FECHADURAS

Não sei como o soubeste mas descobriste a combinação para o meu cofre. Devagarinho foste chegando perto, perto, olhaste, sorriste e como um mágico alcançaste o segredo. Não usaste ferramentas nem explosivos, tocaste ao de leve, a ponta dos dedos numa caricia de peso pluma, um roçagar macio que me desarmou as defesas, talvez te tenha facilitado o trabalho, talvez tivesse esperado que alguém aparecesse e me descobrisse cansada de manter este cofre impenetrável. Ou talvez seja tudo mérito teu e na tua arte de achar a chave certa, sem forçar, sem esbeiçar os bordos, uma entrada limpa, um rodar perfeito e o meu coração passou a ser teu.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

FAZER CAMINHO(S)

Nos passos andados há trilhos corridos, saberes encontrados, dores e risos premiados, vontade impedida, vontade vencida, querer mais além, correr e caír, força da alma, andar para a frente e andar para trás, aprender, ensinar, receber e dar, ao pé-coxinho ou com amparo, desbrava caminho ou segue sinais, aventura atalhos e acautela principais e já no final ao olhar a meta, cansado do calo da vida ainda não sabe para onde vai.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

O SOLDADO

Adeus então, vou indo, não digas adeus, é tão, tão, tão verdadeiro? Não, tão definitivo, tão radical, mas é mesmo, que achas, por que te enganas, é mesmo adeus, eu vou, tu ficas, sim, mas um dia quem sabe voltamos a encontrarmo-nos, não te enganes que custa mais, sabes lá tu! O mundo é tão pequeno e depois quando se quer tudo se consegue, tu não queres? Eu quería não ir, quería ficar perto de ti mas lá fora, tu sabes, não vamos falar mais, dá-me só um beijo. Tu volta-me, estás ouvir-me? Inteiro, que te quero inteiro! Não vás! Não podes fugir? Fugíamos os dois, não queres? Tenho de ir, vais dar-me esse último beijo ou não?! Não quero partir sem te levar o gosto, anda, dá-me um beijo de cinema e diz que gostas de mim, gosto de ti soldado, vai com cuidado, vou, abraça-me agora e não te esqueças de acenar o teu lenço.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

PEQUENINA

Tenho frio, aquece-me, abraça-me apertado, esconde-me no teu peito e faz de mim pequenina, não me digas que me amas, diz-me segredos afastando-me o cabelo num mimo infantil, as tuas mãos nas minhas costas como um colo, ouço o bater do teu coração, tão rápido e forte, parece uma musica, um ritmo para eu cantar, mas embala-me tu, sempre junto a ti tão grande, e beijinhos, quero beijinhos na cabeça e nos olhos e na ponta do nariz, cócegas que me fazes, carinhos da alma dizes tu baixinho.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

RAINHAS

Descolou as pestanas postiças, os olhos a brilharem de ardor pelo excesso de maquilhagem, muito fumo, horas poucas de sono, a realidade estampada no reflexo do espelho emoldurado por lâmpadas cruéis que exibem violentas e à medida que se despe, o homem da mulher. O homem da coisa. A coisa de coisa nenhuma. Agora é, agora já não foi. O recorte cinza da barba renasce sob o incómodo de não se ser o que se quer, as lantejoulas perdem o glamour da noite em que por algum tempo se reinventa no parto de si mesmo, tudo chora, tudo murcha, tudo silencía. Nas mãos demasiado grandes esconde o cansaço repetitivo de se voltar a encontrar com quem não quer. Quer música, néons, aplausos, um eterno show que lhe faça esquecer o peso de se vestir numa normalidade demasiado apertada, um sufocar numa pele que pinta e mascara de memórias que sonhou apenas para ter outro passado.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

PÊNDULOS

Atirou o livro para o lado, suspirou, um tédio caldoso pairou pela sala, olhou-a ao redor, tudo sempre no mesmo sitio, tudo parado, o relógio no seu tique-taque certo, acompanhou o vai-vem do pendulo dourado que reflectia às avessas do côncavo a mesa, o naperon, a jarra, as flores de faz-de-conta que são verdadeiras, sempre frescas na sua morte cativa, nunca esperam ser colhidas nem cuidadas, aguardam o pó, o desgostar pela moda para terem o seu único tempo de verdade na rejeição. Achou-se parecida com as flores fingidas, sempre bonita, sempre disposta, sempre enfeitando a casa. Sentiu receio de um dia ser encarada como coisa fora de moda, encostada num canto da vida assistindo-a às avessas no reflexo da monotonia do tempo.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

UMA GOTA DE UM MAR MEU

Dou-te palavras, tantas, todas as que eu saiba e se conseguir na arte outras, mais hei-de inventar só para te oferecer histórias. Estas despejei-as nas mãos, cheias, pingam horas e horas de tantas letras que junto e uno e moldo e colo num papel pequenino, que se tu soubesses ainda nem ribeiro sou.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

COGNAC

Pegou na garrafa de cristal, sentiu-a pesada para além do habitual e encheu um cálice, levou-o à boca e engoliu o cognac de uma vez só, os olhos apertados, o ardor lento a descer pelo tubo interior do organismo trémulo. Sentira medo. Uma paralisia no tempo e nas pernas que a agarrou ao chão, cravada na surpresa do sucedido, talvez até uma recusa do real, um apelo ao imaginário para escapar dali rápido, veloz, talvez assim aquilo não aconteça com ela lá dentro, já o sonhou tantas vezes, um pesadelo que vem e a massacra e a atira para um poço que gira e a engole e faz doer. Mais um gole, não ardeu tanto, só sente a lingua dormente, picante, o céu da boca cheio de relevos. Sentira medo. Então aquilo era o medo. Acordada. Sem poços a engolir a sua vontade, mas medo de olhos abertos. Um cálice mais fará o medo dormente e ao quarto achará que foi uma experiência para enfrentar os pesadelos. Sabe bem, nada pica, nada incendeia, relaxa, já não se lembra de como é o medo.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

ESPAÇOS

Olhavam os números verdes, a seta intermitente, só o som alcatifado do engenho a desenvolver-se na evolução da subida. Um pequeno solavanco levou as mãos de ambos a ampararem-se à parede de madeira envernizada. Silêncio. Precipitam-se os dois para o botão cego, o dedo nervoso calcado rápido e curto por várias vezes. Nada. Tentam o alarme, soa um tom choroso, de novo e ainda mais uma. Riem, seguram o nó da gravata não há que perder a compostura, trocam a mala de mão, um frio repentino, um calor abafado, pigarreiam. Mais uma vez o alarme, o botão do número do andar, para que andar vai, eu vou para cima, mais para cima, ah admnistração, pois, pois, eu estou em baixo, logo abaixo, recursos humanos, não financeira, ah, claro. Silêncio. Mais calor, o espelho começou a embaciar-se e o ar está saturado de colónias distintas e óleo de máquinas misturadas com cheiro de queimado. Cheira a queimado não acha, sim já tinha notado, se calhar está a arder algum cabo, acha, provavelmente, não de todo, se isso acontecesse o sistema contra incêndios tería sido accionado, acha, não me parece, não aqui no mecanismo do elevador. Silêncio. Olham-se nos olhos pela primeira vez. Gritam por socorro a plenos pulmões.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

AMAR (É ESCREVER-TE)

Escrevo todos os dias como quem ama, como quem precisa para ser inteiro de amar e dizê-lo e até gritá-lo. De tanto escrever, escrevi-te, amei-te, reiventei-te neste acto egoísta de ter só de si e no acto libertador de amar sem elos, o berro de dentro do amor da carne, o silêncio cantado da alma que se dá. Amo todos os dias como quem escreve, como quem precisa para ser amado de o anotar em todas as coisas pequenas e todas as coisas que de pequenas se tornam enormes no simples gesto de reinventar o amor.

domingo, 27 de janeiro de 2008

MARIA TERESA

Chocaram um no outro, olharam-se desconfiados na expectativa da desculpa mútua. Ele arregalou os olhos e disse Maria Teresa, és tu Maria Teresa e ela acenou com a cabeça perguntado-se quem sería aquele que lhe dizía o nome de forma tão familiar e do rosto nenhum traço lhe acendía a lembrança. Ah, Maria Teresa quanto tempo! Tanto tempo e tu na mesma! Lembras-te de mim, não lembras? Mas Maria Teresa só lhe conhecía o timbre, da calva reluzente e do bigode sal e pimenta, nada, tão pouco das orelhas tão grandes e dos papos gordos à roda dos olhos, sim, claro que me lembro... pois é, velhos tempos Maria Teresa, mas conta-me que tens feito, deves ter um bando de filhos e até netos aposto, eu fiquei solteiro, tu não me quiseste!Maria Teresa sentiu o chão fugir-lhe e a memória chegar-lhe perto como uma chapada, o homem que brilhava oleoso e careca tinha sido a sua grande paixão, o seu grande amor. Sentiu-se tonta, o choque de o rever parecía-lhe tão dorido quanto o dia em que se afastara dele por capricho. E no final também ela ficara sózinha. Pediu-lhe desculpa, há coincidências assim no mundo, no nome de Maria Teresa mas ela não era quem ele pensava, ele devía ter feito alguma confusão, sorriu e afastou-se apressada.

sábado, 26 de janeiro de 2008

EQUIMOSES

Ao proteger a cabeça, os braços fechados sobre o rosto e todo o abdómen curvo como uma concha não se resguardava dos golpes desferidos a pontapé na dignidade. Doía-lhe o que segredavam dela, o chiste de mulher que merece apanhar, a vergonha de se ver roxa e pisada num espelho que não lhe mostrava quem ela era. Depois de uma, duas pancadas já nada faz diferença, fica tudo dormente, fechou os olhos, deixou de resistir, embalou-se na memória de si quando menina e evadiu-se nas saias da mãe. Talvez tenha perdido os sentidos, talvez tenha sonhado ou então foi o grito que vomitou que lhe deu o tom de revolta, a pergunta que martela constante nas costelas, no peito, nas pernas e interroga o sentido de tudo isto, a razão da besta, o merecimento na ponta da faca e numa vontade única deseja, deseja muito nunca ter nascido.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A TRISTEZA

Apelou, esforçou-se por recordar e até chegou a tentar o sorriso, um movimento hercúleo nos músculos mas desenhado surgiu um esgar, uma coisa postiça de quem não acredita no que faz. Era tristeza o que sentía, o que tinha dentro de si a ganhar raízes num terreno que há muito tinha deixado de ser lavrado. A solidão viera primeiro, depois os dias cinzentos e de chuva fria em que todos correm e não ouvem o lamento do pedido de ajuda. Acomodara-se ao silêncio e já quase gostava dele, o som do riso uma memória fina, esgaçada nas agruras do quotidiano. Esquecera o toque de ser feliz e como tudo o que se deixa de praticar votou-o à inexistência, abraçando o que de maior a tinha.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

OVO

Esconde-me dentro de ti. Não quero ver o mundo, nem os homens, nem sentir os gritos e a dor que não sendo minha abre chagas, sangra e magoa. Quero voltar para dentro de ti, protegida nesse casulo de água morna, abafada de choros escorridos na perdição do olhar e das cores e também do sol que se esquece e deixa a noite profunda cegar o coração.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

FECHA A PORTA QUANDO SAÍRES

Com o último grito ele encaminhou-se para a porta de saída decidido. Ela berrou um vai, se queres ir e não voltes mais, e ele deitou a mão à maçaneta rodando-a para escancarar a ira que lhe tomava o peito. Arrependida, não, não vás, fica... ainda não acabei. Ele saíu, deixou a porta aberta, ela correu atrás dele, pendurou-se na sua roupa, encarou-o no olhar fechado, os lábios apertados, encostou a cabeça ao peito dele, esfregou o rosto, o cabelo, chamou-lhe estúpido, puxou-lhe os braços e fê-lo abraçá-la. Olhou-a então, sério, triste, pegou-lhe na mão e trouxe-a de volta para dentro de casa, fechou a porta e disse acabou. Acabou mesmo, sem retorno, sem desculpas, sem emendas, sem gritos ou ameaças. Para quê amaldiçoar o que tivémos neste arrastar de culpas atiradas um ao outro, ambos acabámos há muito tempo. Fica bem, cuida-te e beijou-lhe a testa. Ela entendeu a verdade que negava para si, inventava fios para ligar o que se tinha perdido no tempo. Viu-o afastar-se de novo, quando saíres vê que a porta fique mesmo bem fechada.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

DOLCE FARE NIENTE

Sentou-se, pernas flectidas, passou o protector solar rápido e enérgica, pôs os óculos de sol, esperou que as gotas do mar que lhe brilhavam no corpo moreno evaporassem, distraíu o olhar pelos demais banhistas, seguiu desatenta um jogo de raquetes, contou as ondas, perdeu-se. Deitou-se, cabeça apoiada nas palmas das mãos, covas dos braços expostas ao morno do sol, fechou os olhos, relaxou, deixou-se ir para outra dimensão, os gritos felizes das crianças de quando em vez fazíam-na regressar, escutou o marulhar da água na enchente lenta, enterrou os pés na areia e mexeu os dedos pequeninos sentindo-a passar em fio, uma quase dormência pela fricção. Tirou os óculos, apontou o nariz ao astro-rei e achou egoísta que o sol só a ela lhe pertencía.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

LEMBRA-TE DE MIM

Não preciso que me chores ou por mim sintas a pena leve da saudade, tão pouco na dor me guardes. Leva-me pelo tempo afora, naquele que embraquece os cabelos e vinca o rosto, o que desfila gentes que por nós passam nesta vida e naquelas horas em que todos pensam que dormimos, recorda o som do meu olhar e sorri porque um dia nos cruzámos.