DEC.LEI Nº344/97

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Escrever é poder amar-te



sexta-feira, 30 de novembro de 2007

NÃO VOU OLHAR PARA TRÁS

Depois de nos abraçarmos, beijarmos, voltarmos a abraçar, os teus dedos na minha cara a esmagar as lágrimas no borrão do eyeliner desmanchado, de dizermos o quanto nos queremos, as juras repetidas sempre no mesmo tom, as mãos apertadas nas mãos suadas do lenço branco pronto para a despedida, os encontros marcados que sabemos que nunca acontecerão, recomendações como última nota, um telefonema, um sinal, um pedido para todo o sempre recordar, vou andar e não vou virar-me para trás. Não te vou olhar pela derradeira vez, cada vez mais longe do apuro da minha vista, pequeno até ficares apenas um fio, uma linha ao alto que me lembre que do teu calor já me aqueci. Mas não vás. Fica e vê afastar-me, vê como sou tão corajosa...

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

SER DIFERENTE

Defendía sem florear as mãos nem levantar a voz, metía buchas de graçolas de salão a contrastar com a visceral aversão ao cor-de-rosa, pingando muito mais no ameixa ou até no sangue quente que lhe corría nas veias e ondulava nos cabelos sem toque profissional, a sua única e verdadeira razão de ser: Ser. Sem disfarce ou acrescento, livre e libertina, postiço ou trejeito, sem mentira e a bater de frente se assim houvessem razões. Ninguém indiferente, tudo no extremo: Amor e ódios. Estes muitos e variados. Levou a vida a encontrar coisas onde os outros nada achavam e a dar por ninharia grandiosidades construídas pelo mundo. Ousou ser verdadeira e no dia derradeiro amortalharam-na na genuidade com terra grada, não fosse o espirito escapulir-se no perigo da busca de outro hospedeiro.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

INTIMIDADE

Encaixo-me em ti, fechas o meu corpo nos teus braços em cruz, as mãos perdidas no tacto, a tua boca no meu cabelo. Ficamos assim, calados, a acertar a respiração um do outro enquanto escondo os pés frios no enlace das tuas pernas. Sinto-te arrepiado e sorrio. De quando em vez o roçar do teu nariz no meu pescoço. Cheiras-me, sinto o teu peito a empurrar com força as minhas costas, o beijo mole na ponta da minha orelha, faz cócegas. Daqui a nada adormeces, libertas-me, eu procuro o meu lado da cama. Mas acordamos sempre de mão dada.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE

De todo o amor leu tudo o que podía. Nenhum tinha fim porque todos tinham o mesmo fim. Perguntava-se se o amor não é um fim porque sería que de tanto nem um lá chegava?! O amor não é o principio, é o que se atinge e percorre durante. Até ao fim. Porque o fim não tem fim, é infinito, é o amor. Então, melhor não amar: assim nunca havería essa estrada longa para fazer, o amor a termo certo, o amor a prazo, a meta rasgada na separação. Que estranho soía... pois parece que os amantes sabíam desse fim logo à partida, mal davam as mãos e dizíam amo-te e mesmo condenados, o deserto minguava-se ao paraíso, o suicidio da viagem atraía sedutor na envolvência e promissor fim. E depois, aquela legenda sorridente com que se fechavam as histórias, mesmo mortos ou separados, em que todo o alcance do fim tinha sido o fim em si mesmo: amar.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

(OUTRO) SENTIDO

Sabes que estou aqui: ouves-me, sentes-me mas não me vês. Lês-me como se tivesses uma venda macia que te acarinha nas palavras dedilhadas que a ti dedico. Duvidas... será de mim, será de lá esta certeira fundura que se acerca do peito, suspiro que enche a noite, entretém no adivinhar forma, as formas que enchem este vazio sem rosto, crescendo da imaginação. Tentas encontrar-me em verbos escondidos, uma ponta do véu no adjectivo repetido que te leve a compôr uma caracteristica, um sinal perto do queixo, um timbre especial que aporte às cores da terra ou aos frios nórdicos, um mistério descolado das linhas que escrevo.
Estou aqui e sou apenas um outro sentido.

domingo, 25 de novembro de 2007

DOMINGO (escrever é poder amar-te)

Domingo. Hoje não tem que se levantar com a noite mas o vicio dos anos empurra-a para fora da cama. Domingo no robe branco até aos pés, café só para si sem atropelo de choros de crianças sonolentas nem gravatas por ajeitar. Domingo de conversas ciciadas com o cão que arrebita as orelhas ao mimo da boca simulando beijinhos. Domingo de tempo seu gasto numa ronda de pés de lã em que a casa se embala no filtro das luzes amarelas dos candeeiros solitários da rua. Domingo ao solo do galo que esganiça o prenúncio da madrugada em partida. Domingo de segredos em que se senta a desfiar poesia em cadernos de escola forrados a papel de flores. Domingo em que se revela a si na fragilidade confessa do aparo da caneta de tinta permanente escorrendo emoções que aos dias de semana lava, passa e arruma.

sábado, 24 de novembro de 2007

A GUIONISTA

Fechou o livro com força, atirou-o para o canto do sofá e soltou uma palavra reflexiva. Assim não, ficarem separados para todo o sempre, condenarem-se ao exilio da paixão por amor a outros, não! Onde já se viu tão pouca energia depois de tanto se debaterem por um mísero beijo?! Agarrou papel e caneta e desenhou Caro Autor, parou, mordeu a caneta, soube-lhe a canela (canela?! canetas com sabor a canela?) - emendo - plástico, a data, é sempre bom pôr-se a data, pára, hesita no tom, vai chegar-lhe a valer, não, perderá a razão, explanar por pontos como numa reunião, afável no trato para não espantar e nem ler adiante, Caro Autor (já o disse, estou a repetir-me), creio que a visão que tem sobre o amor e um par romântico está completamente desactualizada senão, vejamos: acha que alguém que está completamente apaixonado por um homem não larga tudo para ir ter com ele? e um beijo? UM BEIJO??? Nem sequer uma descoberta do outro, ao fim de sei lá quantos meses andarem naquela conversa de lá para cá sem evolução alguma? Pois deixe-me dizer-lhe que se fosse comigo eles ficavam juntos, sim senhor! E já agora, aviso-o: não vai ter saída nenhuma o seu livro! Passe bem!

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

CASABLANCA

Na tela branca e negra olhou-se bela, lágrimas nos olhos, sem nariz vermelho nem ranho a entupir a fala. Endeusava-se no traje cintado, sem perder a maquilhagem, o fumo em espiral enquadrava-a no ecrã. O piano martelava a dor do desejo mas era sacrilégio escutar, que ao longo do tempo o tempo se torna longo. Murmurava as falas decoradas na lamúria da partida, os braços tiranos do amor a atirá-la para outro, uma ventania a esbofetear os corações separados com as letras deitadas à direita a dizerem fim. Quando as luzes se acenderam entendeu que a realidade não era a dois tons, a solidão tem outras cores e os filmes dos outros podíam ser os seus. Apertou a gabardine e ajeitou o lenço apertado ao queixo. Sentiu uma mão no cotovelo que a acompanhou. Pararam. Ele tombou a cabeça levemente sob a aba do chapéu de feltro e acendeu um cigarro que lhe passou. Alumiou outro para si. Ela deixou que o estranho a tomasse na boca e lhe tirasse o ar. Fechou os olhos. You must remember this, a Kiss is just a Kiss.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

SERÕES DO TEMPO

Quando a chuva tilinta lá fora no varandim de metal da nossa janela e te vejo ataviado no velho roupão de xadrez, olho pelas dioptrias do presente serões de silêncio em que tricotava ano após ano e tu desenhavas ramos de flores, sempre viçosas e muito coloridas. Perguntavas-me se gostava dos teus bouquets e eu respondía-te apontando a agulha, aviva aqui, um contorno mais leve ali. Voltavas aos teus guaches e carvões, eu à camisola sem fim. Feitos os acertos demandavas de novo opinião e eu sabendo que tudo estava na mesma, concordava que assim estava melhor. E a camisola, perguntavas tu, quase a acabar afirmava eu e tu sabías que aquele trabalho havía de permanecer sempre assim, feito e desmanchado, como um ciclo vicioso.
Quando a chuva rejunevesce a terra, olho as tuas aguarelas. Tu dormitas com uma manta de lá riscada que um dia pensou ser camisola.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

KGS DE LÁGRIMAS

Encaixou-se no maple a custo, pernas tentadas na posição de lótus, joelhos como asas e naquele colo a caixa de bombons tão brilhante, pequenas pratas dourada e cereja a arredondarem marrecas de desgosto com sabor a chocolate. Amparou o delirio na cova do ventre quente, mãos hesitantes entre a primeira vitima. Lembrou-se dele, escolheu café: sentiu os dentes a enterrarem devagarinho na crosta e um creme esbranquiçado esvaír-se do seu interior, babar no queixo, pingar o dedo. Encostou a mistura ao céu da boca e sentiu-se aliviada de tanta saudade, a lingua a tactear a mistura, os olhos levemente tombados para a imagem pouco nitida dele. O relevo em ss no chocolate branco identificou o próximo, ela, sinuosa, Verão tão curto para agora alimentar este Inverno, uma boca demasiado faminta para se contentar num cubinho tão pequenino... em que canto do mundo estás tu? Ao terceiro suspirou em praliné, um gosto de avelã a prever o hibernar do amor. Amassou as pratas dos seguintes, já devorados aos pares, ele e ela, uma raiva incontrolável pelo engodo da paixão, o palato alvoraçado e enjoado sem destrinçar sabores doces e o acre das lágrimas a pingarem a caixa já quase vazia. Acabaram. E o choro da culpa engordou-lhe a distância do tempo em que a saudade amarga.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

SENTADA

Sentada está a mulher, sapatos em paralelo, joelhos apertados, coxas unidas, ventre placado, hirta no dorso, pescoço destacado. Roda os olhos de lá para cá. Entrelaça dedos nos seus dedos. Sentada está a mulher, vestido à espera do balouçar, anéis de cabelo para serem tocados, passos ensaiados sem tablado para marcar.
Sentada está a mulher à espera para dançar... ninguém a vem chamar. Mão alguma se aproxima, se estende e lhe indica o salão só para si. Rodopiar, entontecer no braço erguido, aquecer na cintura como um pião puxado, torcer o pé, pisar no outro, desfazer o sorriso no troca-passo, que embaraço!
Sentada está a mulher que espera a noite passar. Dói nos sapatos a falta da dança, joelhos apartados, coxas murchas, ventre vazio de nada bailar. Cai sobre as espáduas, sobra cadeira, dobra o pescoço sobre si inteira.
Mulher sentada à espera do nada.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

DÁ-ME AS TUAS MÃOS

Dá-me as tuas mãos, deixa que as aqueça entre as minhas, lhes faça festas serenamente sentindo a pele a amornar à medida que lhes toco e sinto os pequenos calos que escondes na concha, um outro maior no dedo, uma pequena bossa de quem usa as mãos como ferramentas das letras, tanta linha riscada nas palmas, chamam-lhes caminhos, os teus com ruas principais e depois tanta bifurcação a descobrir bosques, cidades, tanto mar. Tanto amar. Anda, dá-me as tuas mãos, mostra-me como fazes aqueles truques com os dedos a projectar animais na parede quando a luz atravessa as tuas mãos ágeis ganhando vida na vida de outros. Junta-as nas minhas mãos, deixa-me sentir os teus dedos e os nós a atarem-se nos meus num aperto tão quente como as minhas mãos estão agora apenas de tocar as tuas.

domingo, 18 de novembro de 2007

PREGUIÇA

Primeiro os sons. Depois o cheiro, logo a seguir o tacto. Os olhos vão permanecer tranquilos, embalados na água morna dos sonhos que ainda se conseguem lembrar, fechados para guardar as nuvens polposas e brancas para onde voou; daqui a algum tempo a memória apagará tudo e só resta a sensação de conforto de um sono bom. Nas mãos o macio da roupa de cama, algumas engelhas do aconchego dos lençóis puxados ao pescoço, joelhos próximos do ventre, pés traçados retardando o despertar. Abre os olhos, abre, ouve-se dizer. Abriu, fechou, acomodou a retina à luz filtrada do quarto, pestanas a afagarem a vista, não há nuvens brancas, nem voos de pés nus no tule esvoaçante. Eram nuvens? Talvez algodão, bolas de algodão... cama boa, paz, tanto silêncio. Até o apito ondulado do amolador lá fora soa a sonhos. Esconde as mãos em prece junto ao sexo quente, o queixo puxado ao peito, se o amolador soprar o apito de novo levanta-se. Não ouve nada, só o seu respirar, a boca seca, os pés acariciando-se na macieza da pele, o amolador a chamar a chuva. Não se levanta. Se o amolador soou outra vez é porque vai chover e aqui está seco e bom e morno e macio como se a cama fosse de nuvens de algodão. Se fechar os olhos e beber o quarto talvez volte a sonhar.

sábado, 17 de novembro de 2007

A REDOMA

Na maquilhagem densa escondía-se da juventude: Apoiada sobre os cotovelos roçava as costas trajadas de cetim negro e escorregadio no balcão manchado de fundos de copos alcoolizados pelos anos de bocas encostadas aos vicios de confissões perdidas no espelho embaciado das dedadas do barman. Rodava lentamente de um lado para o outro sentindo as pernas escanhoadas na lâmina esbeiçada e ferrugenta deslizarem como um viés, da saia pouco pano, a groselha extra açucarada a tombar em diagonais vermelhos recordava-lhe vagamente que na semana anterior e ainda na outra passada o ciclo da lua não se cumprira e que se fechasse os olhos e continuasse no movimento do pêndulo do relógio tudo se acertaría até chegar ao ponto exacto sem falhas, sem a ausência do cliente novo que viera uma só vez e por quem se encantara no toque das mãos cuidadas. O barman bateu-lhe no ombro a lembrar-lhe a hora de serviço, a moeda adiantada antes de entrar na redoma de vidro a girar e entontecer a roupa de negro no carrossel das peças caídas ao som de uma qualquer musica asmática. Rodava. Rodava a vida, rodava a cabeça, rodavam os pensamentos na embriaguêz descuidada das mãos que não lhe havíam dado tempo de aquecer.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

OS NAUFRAGOS

Apertados nos membros, sufocavam-se nos beijos e nos cabelos longos dela, no embaraço dos lençóis a sobrar derramados pelo chão. Vestíam-se de pele, dedadas, manchas digitais como nódoas negras, um sinal de saliva no ombro, no pescoço uma mordedura rosácea como um escaldão. Olhos fechados, que o caminho fazía-se de cor e na cor do intenso o rumo certo para descobrir janelas de luz. Desliza-se nela a paixão, escorrega nele o passo certo.
Conta-me histórias, sussurrava ele e ela dava-lhe as mãos e fazía-lhe mares para navegar, alterava-lhe marés no ondular das costas, dava-lhe turbulência no apertar das coxas e subía vagas a pique para que ele alcançasse o horizonte.
E agora, gritava ele perto do naufrágio e ela arrastava-se nele salvando-os na praia.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

CINZAS, ANIL E VIOLETA

06.00 PM. Outubro, finais. Desligou o rádio, puxou o travão de mão, descansou o pé, segurou o volante de mãos firmes, dedos espaçados. Parada no trânsito, parada na vida, caminhada sem meta, o ir e vir da rotina, ao lado outros tantos cópia de si. Espreitou o espelho retrovisor, ajeitou-o à borbulha despontada na testa, apertou-a sem misericórdia, atrás, a buzina impertinente e ininterruptamente esmagada sob a palma furiosa pedía-lhe que iniciasse a marcha sem estrada para andar. Agitou os braços ao alto e fez cara feia, espetou o dedo medio frente ao espelho e a buzina respondeu-lhe já rouca. Zangada, blasfemou, aumentou o volume expelido pela garganta, despejou a seguir num berro a incompetência do chefe, o projecto no fundo da gaveta, a malha na meia, a zanga com o namorado, o café frio, a ida adiada para casa. Baixou a cabeça, bateu com a testa no volante e sentiu os cabelos entrarem-lhe na boca. Sentiu necessidade de chorar mas não conseguiu, só arfou de raiva. Devagar ergueu-se, olhou defronte, viu as luzes do carro da frente incendiarem-se e à largura de todo o vidro do párabrisas um céu imenso a entrar-lhe no peito. Riscado a anil e violeta, encimado por uma barra cinzenta, o dia seguía para casa, lento, calmo, uma tranquilidade quase pesada, quase compacta numa hora de despedida. Em breve a noite entraría no seu turno de trabalho tão lenta e calma como o día fechava a porta. De tamanha beleza ensurdeceu à buzina que avisava o reinicio da fila em marcha e agradecida deixou que tranquila as lágrimas apagassem a ira.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

NUTRIR

Falava com os olhos na boca e alimentava a imaginação na flutuação de sons que em ondas caminhavam como plumas magicamente transportadas na bruma até à sua boca. Não ouvía, matava fomes antigas de verbos simples, permitía-se entontecer na companhia de palavras claras e sem outro sentido que não o dito. Uma e outra vez tentou o alcance, a mão para arrebanhar feliz e menino as bolhas de sabão de sete cores, um pico a alfazema, um toque de rosmaninho, um tanto de silêncio, outro de descoberta: palavras, textos da boca completos na escuta de quem fala idêntico esperanto.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

A BOCA

Húmidas e brilhantes, carmim ou rosa chá, arqueadas, polposas, levemente pregueadas, lábios dados, colados, pele roçada, agarrada na prensa morna de outros dois, tomados, sorvidos, tocados, invasão à comissura, molhada, oleada, boca lambuzada, sabor tacteado, beijo repenicado, roubado, sugado, murmurado, fugido.
Tanto beijo sentido numa boca que diz amo-te.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

A BELA

Olho vesgo, cicatriz arrepanhada do pescoço à maçã do rosto, três dedos na mão esquerda, cabeleira desgrenhada até à cinta, a bruxa de negro é o susto dos infantes. E dos adultos que a condenam ao ermo. É feia. É velha. É bruxa. Alguns calam na memória a donzela que fora formosa, e já nesse tempo munida de feitiços maltratava os corações. A nenhum se rendera, esperava pelo amor. Que tardava. A frescura foi-se num Outono frio e chuvoso. Ficou amarga e baça. Dizem que perdeu o tino por não ter perdido a virgindade. Mas é mentira. Quem a perdeu foi um bando de mulheres que a tomou de assalto, lançaram fogo à casa, desfiguraram-na a quente e vazaram-lhe um olho. Deixaram-na no inferno a gritar pelo amor que nunca chegou.
Mas hoje exibe orgulhosamente os dedos que lhe restam; os outros dois cortou-os ela para se salvar do nó em que lhe deixaram a vida naquele dia.

domingo, 11 de novembro de 2007

VICIOSA(MENTE)

De café. De chocolate. De fumo, de fumos, de bebida, de jogo, de meter o dedo no nariz, de coçar a anatomia, de roer as unhas, de comprar, comprar e comprar, de escutar atrás da porta, de iniciar qualquer frase por então é assim.
Nenhum tinha.
Havía-se viciado no cheiro dele. Um só vez bastara e a dependência agarrou-a no gesto de lhe agradar, dobrar-se, pedir, mendigar-se num amor vão que só tinha dias úteis. Idolatrava-o, esperava a altivez do nobre nas migalhas pobres que lhe consumía o olfacto de olhos cerrados, absorvendo aromas dum ser imaginado que perfumara nos desejos mais intimos.
Achou-o por acaso num fim de semana de sol, pendurado noutra mulher. Cheirou o ar próximo e sentiu um odor envinagrado, um pico azedo a comida estragada, encolheu-se, franziu os olhos, levou a mão à boca sustendo a náusea.
Não conseguiu voltar a estar perto dele. Agora de segunda a sexta toma religiosamente um chá às seis da tarde.

sábado, 10 de novembro de 2007

GOOD NIGHT

Tirou o casaco, despiu a vida de fora. Descalçou-se, desceu à terra. Serviu o casal de gatos de uma tijela de ração, outra de leite. O que sobrou bebeu-o da embalagem.Largou o resto da roupa por cima da cama de casal, colcha de renda, herança de uma tia-avó solteira.
Encheu a banheira, juntou-lhe uma mão cheia de sais de banho azul metileno. Escaldou-se ao entrar e aos poucos aguentando o ardor cobriu-se de água. Olhava o tecto, estáctica, alheada de tudo, a água a arrefecer lentamente. A pele arrepiada arrebitava-lhe os seios, a penugem dos braços, a púbis, a solidão de nada mais a fazer a seguir ao banho. Mirou-se gradualmente desde o colo até aos dedos dos pés apoiados pela pressão contra as paredes da banheira. Não se achou defeito, mazela, aleijão ou idade avançada que lhe pregueassem as carnes.
Um gato miou, ela ergueu-se, puxou a tampa preta pelo fio metálico e vazou a banheira. Vestiu o roupão turco, serviu uma tijela de sopa e ligou o microondas, afagou os gatos que se entrelaçaram nas pernas húmidas, retirou a tijela de sopa depois do tlim soar e levou-a à boca. Queimou os lábios mas insistiu, sorvendo, ligou a televisão, apertou o comando automaticamente sem se deter em canal algum. Desligou-a, atirou com a tijela para o lava louça, escovou os dentes, chamou os gatos e deitou-se.
No escuro olhava o tecto estáctica. Sentiu calor, tirou o roupão turco.
Aconchegou-se na roupa de cama nua em posição fetal, uma almofada entre as pernas, abraçou-se ao seu peito e baixinho em conjunto com o ronronar dos gatos entoou good night sweetheart well, it's time to go...

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

ABRAÇA-ME

Vem. Chega perto...
Braços em paralelo estirados ao corpo adiante, as palmas em concha para tomarem no tacto as costas, os ombros, no aperto encostado de toráx contra tórax, o bater do coração descompassado, apressado, doido por entrar no peito que se une fazendo dele o seu novo segredo. Cinge forte, em relevo ossos, carne, tanta pele eriçada no morno esconder, mimetiza-se nas veias o sentir amoroso, esfrega odores em pescoço oferecido a queixo, boca, olhos que devoram olhos, humidas sentinelas que bebem de palavras escondidas o que se entrega no valor de um abraço.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

REQUIEM

Em certos dias perdía a voz, um único som ou respirar mais arranhado conseguía despregar da garganta e mesmo que se esforçasse, as cordas vocais atavam-se em nós e ruído algum se produzía. Não o fazía por intenção: vía o mundo como uma pauta, as notas pretas a destacarem o fundo muito branco dos cadernos de musica, organizadas, linha acima, linha abaixo, cinco ao todo. Sempre o sentira assim. Primeiro sem o entender e sem alcançar porque perdía o som que se agitava dentro do peito, as costelas a vibrarem como um diapasão, a afinação era nenhuma e aquele tormento de colcheias e semi-colcheias a chocarem perturbava-a sem conseguir chegar ao aviso e ao pedido de socorro. Com o tempo aprendeu a engolir em seco e as notas empurradas pela bola de ar inspirada eram atiradas de costas numa tontura que as deixava sem acção por momentos. Mas logo se organizavam e se formatavam na pauta, ordenadamente, o som pronto a ser expelido. Mas não saía. Subíam como vapor até ao cérebro e durante horas, dias atormentavam-na numa sinfonia terrível que lhe dominava a vontade.
O vómito surgiu no dia em que lhe beijaram os lábios. Cuspiu tudo a jorro, em golfadas negras e brancas que sujaram os pés de quem a beijou. Ele horrorizado partiu em debandada e foi incapaz de agarrar as notas caídas e formar uma simples melodia para lhe oferecer.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O FILME

Nos golpes de pestanas não se protegem só os olhos ou se humedece a vista, resguarda-se esta câmara de fotogramas invertidos que lança, na melhor concepção balistica de certeiros sinais ao alvo do coração.
Olha uma vez sem prender atenções, outra para se certificar que nada lhe atingiu, uma terceira para conferir que do outro lado há contacto e a partir daí - se o houve - não há caminho a arrepiar.
Olha, mira, desvia, atira, fixa, brilha, pisca, fecha lento, roda a cabeça, volta de novo, verde, azul, castanho, negro, violeta (ou serão cinza?), lindos, olhos lindos, já não há olhos, há rosto, a boca, a boca cresce desmesuradamente, só uma boca nada mais, reduz, amplia ao pescoço, lateja a jugular, sobe, olhos, sorriem os olhos, um vinco no canto da boca (aquilo é o quê?!Um sorriso?!), plongée, peito trabalhado, desce, desce, joelhos apartados, tornozelo fino, contraplongée, mãos, anéis (?), plano americano, que bonito, foca e fecha: os olhos.
Os teus olhos contaram-me hoje em segundos uma história de longa metragem.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

OVERDOSES DE SILÊNCIO

De um lado para o outro. Ao redor de si. Sobre o seu pensar. Enfiada no sentir. Cristalizada no recordar. Debruçada sobre o adivinhar.
Não digam nada à mulher que ama.
O corpo grita mas é autista ao mundo de fora.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A MULHER, O CÃO E O GATO

Empurra um carrinho de supermercado atafulhado de panos, ao ombro um gato preto luzidio como uma pantera preso numa guita ao seu pulso. Caminha ao lado um cão bicolor, forte, ligeiro no trote, orellhas abanando à medida da lingua rosa pendente.
A mulher ri, ri muito. Tem poucos dentes, muita fala, não se queda no diálogo que empresta ao gato e ao cão. Senta-se no chão e estende as suas tarefas ao redor: remenda, costura sem fim panos e mais panos num afã sem descanso.
Quando pára chama o gato e o cão, descobre dos seus bolsos papéis tão velhos como os tecidos que remenda e do riso faz festa ao oferecer aos seus companheiros pequenos pedaços de pão, fruta, o que houver que tenham desprezado. Não come, alimenta-se das conversas que faz com o gato e o cão.
Empurra um carrinho atafulhado de sonhos, desliza no mundo mágico do devaneio, ampara-se na alma do gato e na fidelidade do cão.
É feliz.

domingo, 4 de novembro de 2007

EXCHOCOLATAÇÃO

Em negros pedaços partidos soou o fundo do calor no banho-maria ao aroma do cacau. Os olhos semi-cerrados na alquimia do sólido para o maleável mexiam em espirais lentas o segredo untuoso. Manteiga: amarelo e negro, levemente salgado, levemente doce, levemente acre, forte tentação no verniz emprestado. Molhou o dedo, chupou quente, a lingua amparando um fio de baba desviado pelo carreiro dos lábios. Uniu as gemas com açucar, espuma dourada. Espesso e forte o chocolate tingiu como um negativo marmoreado a tela da gemada em oitos deitados como sinal de infinito. Inebriou-se no perfume libertado a cada toque, tocou o peito, sentiu a mistura crescer sob as mãos. Agitou frenética as claras até montar um castelo nos seus sonhos, branco, alvo. Envolveu delicada mas decidida, de baixo para cima, em movimentos certos, respirados, os dois polos nivea e negro até atingir o choque. Pequenos furinhos na mousse assemelhavam à sua pele o arrepio da sobremesa pronta a ser comida.

sábado, 3 de novembro de 2007

PONTO PÉ DE FLOR

Quería ter sido médica, mexer em cicatrizes, tendões, orgãos, agulhas, batas brancas, salvar vidas. Mas o pai, austero amputou-lhe a vontade: quer linhas e tesouras, costuras e uniforme vai para a escola aprender bordados. Ela foi. Ela aprendeu. Ela era a melhor. Ela era mestra na arte de coser.
O pai, senhor determinou a sua mão na vontade de outro homem, que tanto talento era dote garantido. Ela foi. Ela aprendeu. Ela era a melhor a pregar botões e a coser baínhas.
Ficou cansada de tanto bordar para os outros e nunca ter salvo nenhuma vida.
Resolveu salvar a sua: bordou nos seus lábios um lindo ponto pé de flor e entregou-se ao mar.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

A LOUCA

As palavras dos outros servíam-lhe na perfeição de um fato feito sob medida mas na lingerie da alma, no avesso do mundo exaltava a cor da loucura. Torcía desejos e vontades em torniquetes amarfanhados pela contrariedade da normalização, socializava-se com pés de cabra sob os linhos das toalhas de mesa e escondía cicatrizes esculpidas a canivete num coração que vía rostos no formato das nuvens felpudas.
Sufocaram-na na militarização da ordem e dos números, ajoelhou sob o cabresto do dever e um dia cheia, a implodir do que a sustinha viva rasgou a roupa, correu nua pela cidade, devorou-se ao escárnio dos que passavam.
Despiu as palavras dos outros e atirou-se no remoinho das suas.
Há quem diga que quando o sol aparece a riscar de laranja o negrume da noite partida a louca grita para que ele nasça.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

TITANIC

O fio hirto do aço penetra na carne, ergue um pedacinho da pele, no vidro tinto um pouco de seiva e agora de uma vez só, lenta e libidinosa empurra o embolo esguichando o liquido incolor. Cerra os olhos, os dentes, as pernas. Arde. Solta no tacto a meia de nylon enrolada como a cobra.
O queixo pende no peso da saliva que lambe nos lábios, mil cores batem nas pestanas maquilhadas a negro, eyeliner na mão firme da manhã, brilhantes nos dedos pingados a beringela nas unhas que se encaixam nos joelhos frios. Solta as pernas, os pés esfregam no tapete kisch de cor rosa bombom os afagos que lhe queimam na falta. Sente-os, sente as mãos num vai-vem. Sorri. Ri. Geme. Quer mais. Sente-se. Na força do toque lateja a ondulação do sofá de couro que range. Agita-se, dobra-se no ventre, sacode o cabelo no golpe de pescoço longo, a tatuagem pisca um olho, encaracola nos sentidos todos os mundos que conhece.
Agora quer dormir, não abre os olhos. A vida passa devagar, tão devagarinho assim, talvez a agarre, não a perca...