DEC.LEI Nº344/97

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Escrever é poder amar-te



quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A CONTRABANDISTA

O peso acamava a erva húmida. Não fazía mal, estava habituada a sentir as costas molhadas, o bafo quente e com cheiro de acetona em cima da cara, pelo pescoço. Pensava nele, só pensava nele e alivia-se de outras dores que naqueles instantes não doíam porque as moedas assim ganhas são como outras iguais às do volfrâmio que também lhe pesam nas costas e se escurecem nas mãos de quem procura a carne como a noite caída. Troca o minério e troca o corpo por aqueles que longe de casa sentem saudades. Este já está, o dinheiro na mão, amanhã farinha e açúcar.
Mais uns passos, talvez outro vagabundo da noite apareça. Rondou as árvores, faz-se mostrada, a saca às costas que se mais nenhum vier o minério há-de ir a outro lado.
Um silvo do outro lado chama-a, é ele. É o assobio dele a cortar a escuridão e alumiar-lhe o caminho até ao primeiro beijo da noite. Larga a saca, a corrida leve, o coração disparado, outro silvo, tomba.
Desta vez é ela que aquece a terra, húmida do sangue que corre pela noite fora.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

UMA MULHER NÃO CHORA

Encolhía, engolía na garganta a vontade do gemido, do grito. No castigo encontrava menor dor do que a ordem dada na ponta do dedo, o ultimatum de que se algum soluço soasse a pena sería acrescida.Não chora. Não, não chora, aguenta aí a dor que te dilacera por dentro, seja na injustiça da condenação seja pelo efeito da mágoa por te cercearem o ar dentro de metros quadrados escassos em que o quarto é a prisão.
Lá fora a vida.
Crescía, agigantava-se no tamanho das pernas, mas o coração é sempre do mesmo formato e absorve sempre da mesma maneira a dor e a vida encarrega-se de o tornar pequenino, quase mirrado na hora da partida. Doutras avoluma-o, não cabe no peito tal é o amor que o banha e onde ele vagueia para cá e para lá. Não chora. Não, não chora, cerra os dentes e diz adeus, a mão firme na despedida , seja no breve seja no eterno acenar. Não chora que o amor repete, ecoa dores e a maior é quando o coração explode cá dentro.
E a vida onde está?
Engole sentires, sufoca a saudade, apaga a memória. Segue. Vai em frente, mas lembra, uma mulher não chora.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

SEM PALAVRAS

Sob a luz do candeeiro de leitura revelavam-se os anos da madeira encerada, o embutido de latão que delimitava uma moldura no tampo da secretária mantinha ainda o dourado velho. A um canto um porta-retratos, ao centro um copo de cabedal gravado a ouro atafulhado de canetas e lápis afiados. A mulher alisou o papel de carta, muito fino quase transparente, pautado de linhas azuis desmaiadas. Mandou beijos no final e acrescentou com amor, assinou com rebordos carregados na 1ª e última letra do seu nome. Dobrou em três partes o papel fino e guardou-no sobrescrito que lambeu no triângulo colando o envelope. Afagou na ponta dos dedos o homem jovem que sorri da janela do porta-retratos. Ao alto deixa a carta aí encostada, só se vê o olhar e a testa, desliga o candeeiro, profere baixo até amanhã.
Amanhã voltará a sentar-se à secretária e a mandar beijos no fim da folha de papel fino enquanto sorri e afaga o vidro frio do porta-retratos que tem a fotografia do homem jovem.
Um dia alguém abrirá aqueles montes e montes de cartas e apenas lerá beijos com amor e o nome da mulher sobressaído a tinta grossa na 1ª e última letras. Nenhuma saudade, data ou pergunta encontrará na carta em branco.
As palavras esgotaram-se quando ele partiu.

domingo, 28 de outubro de 2007

RETRATO A PRETO E BRANCO

Há um mistério indecifrável na vida dela, um tesouro sem forma e cheio de conteúdo, adjectivos são todos aquém do que carrega.
A mulher que caminha vai leve e tão cheia, beleza e suavidade perfumam no halo que a protege o espaço entre o mortal e o centenário. Leva flores no rosto, águas do ventre que a fazem mitologia e dos pés raízes que a cravam na terra como se árvore fosse.
A mulher que foi não é mais.
A preto e branco nas tranças apertadas sugou tempos a outras gerações e agora espalmada e horizontal ainda fica menina, ainda o esquife se torna álbum de fotografia.

sábado, 27 de outubro de 2007

O 5º SEGREDO

Ela contou um, dois, três, quatro vezes em allegro numa nota de sol. Ele batía o pé ao ritmo dos segredos vertidos, no coro sorrisos, um gargalhar suspenso nas palavras saídas em bafos. Interrogações e ligeiros pedidos no solfejo gargarejado, travessão nas seis cordas para escutar ao coração.
Ela ouvía musicas dentro de si que fazíam passos andados vibrarem. Ele escutava musicas dentro dele que mais ninguém regía.
E quando se veneraram um no outro o 5º segredo fez-se amor: ela dançou o som que ele ecoava dentro de si.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

ESCREVER (é poder amar-te)

Primeiro inclinou-se sobre a mesa, um gesto dedicado para melhor se debruçar sobre ele. Escreveu-lhe um rosto, olhos rasgados e boca cheia. De seguida inventou-lhe as mãos de dedos longos e de nós perfeitos numa pele levemente acetinada que subía braços arriba até ao implante de um dorso seco ligeiramente aconcavado nas costelas contadas. Sem fim descreveu-lhe às pernas.
Rectificou a pontuação como uma especiaría tirada de um barco de piratas. Leu-o, provou-o, sorriu e gostou.
Afagou na palma o vinco das letras iniciando o ritual dos preliminares.
No avanço da narrativa recebía o prazer do texto, deixava-se ir, quería-se tomada.
E tanto desejo sentiu que na cópula mergulhou nas letras e fez-se linhas junto a ele.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

COMO UM ABACAXI

Cara fechada, séria, o sobrolho esquerdo arqueado na apreciação critica, voz colocada nas certezas do dizer, gesto marcado, passos fortes e vibrantes. Uma bolha rodeava-a.
Mas aquele que conseguiu chegar-lhe descobriu-lhe na semelhança do abacaxi a dureza da casca, o espinhento dos losangos como armadura contra as emoções, a rama de serrilha pronta a desferir logo que a ameaça se chegasse próximo.
Perfurou-a de paixão até atingir a polpa dourada, macia, o melaço pingando até à coluna circular e que aguentava uma carne suculenta cheia de carinhos e desejos.
Comeu, saciou-se, melou-se no suco amarelo.
Depois fartou-se. Vieram as moscas patinhar no miolo, a casca manchada de pisaduras, a rama murcha.
E ela aberta, escachada no polme azedou.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

MAIS RÁPIDO

Às vezes deixava que o azul-china lhe tingisse o indicador e o polegar: ficava a admirar-se naquele borrão que alastrava lentamente permitindo uma maior visibibilidade das linhas das impressões dos dedos como um mapa topográfico impresso na pele. Conseguía ler montes e vales, depressões, uma pequena falha na crosta provocada por um golpe feito pela lâmina afiada de uma folha de papel... ardía, ardía muito como se a dor fosse insuportável e de dentro do peito, da barriga. Sabía que ardía porque o papel tem composto de cal e é isso que faz arder. Mas que interessa a cal e o composto se a folha só serve para ser sacrificada às palavras, cortar dedos descuidados e gulosos e ainda aparar os borrões tingidos na polpa do indicador?
Às vezes recheava folhas e folhas e o afilhado lía, com muitas paragens, como se faltassem bocados, palavras de união entre o sentir e o pensar, o querer e o agir. Ela arrancava-lhe as páginas da mão à bruta e desfiava os textos sem paragem, uma melodia completa sem o embaraço da paragem para respirar. Suspirava no fim, cansada, feliz.
E o afilhado retomava a leitura e achava-lhe fendas, depressões como um terreno acidentado em que ora se encontra pedra ora se nada no lago.
É que as mãos não eram rápidas o suficiente para apararem tanto pensamento.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

PRINCIPES&PRINCESAS

Malha, laçada, malha, deixa caír, laçada, apanha duas, malha, conta-me uma história, que história queres tu que te conte, laçada, malha, deixa caír, uma de principes e princesas, ah de principes, sim e também de princesas, está bem, laçada, era uma vez uma princesa que sonhava com um principe, e o principe não sonhava com ela, não, só a imaginava de vez em quando como nas histórias, apanha duas, malha, e depois, bom depois um dia encontrou-a num reino tão perto, tão perto, tão perto que se fazía longe, não percebo, malha, laçada, quer dizer que ele já conhecera muito reino menos o que estava junto ao seu coração por isso não lhe dava grande valor, deixa caír, e depois, depois encontraram-se num dia de chuva e abrigaram-se os dois num tronco oco de uma árvore, o que é oco, é o que espera ser ocupado, cheio, recheado, laçada, apanha duas, e depois, depois olharam-se nos olhos e ficaram com os corações colados dentro da árvore e a árvore voltou a ter um tronco forte que podía suportar ventos e tempestades, malha, malha, laçada, oh conta outra história de principes e princesas, não posso, apanha duas, porquê, malha, porque assim quando fores grande vais saber onde está o teu principe de encantar e não é numa história, malha, laçada, malha... PORQUÊ?

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

COM LIMÃO

Tinha saudades.
Engolía na secura da ausência silêncios que se assemelhavam a bolas de algodão e no nervoso dos dedos enrolava mechas de cabelo em espirais que recomeçava e recomeçava num sem-fim, como se de algum modo apertasse o tempo e a longura dos dias se abreviasse até à ponte do reencontro.
Num momento soluçou, tombaram lágrimas em catadupa, o lábio debaixo a tremer num frémito, os dentes armados em barragem e depois o berro, o abrir de tudo: Desde o coração até ao som agudo incontido na dor da saudade.
Chorou como as crianças, batendo em si própria, a sacudir-se em espasmos, o ruído alojado nos pulmões a saír como um silvo que vai longe até morrer e volta depois poderoso.
Acercaram-se dela, perguntaram pela aflição. Ela sentía-se aliviada, quase renascida, libertada com tanta explosão de sentires sem contenção.
Trouxeram-lhe um copo de água, deram-lhe umas palmadas nas costas à laia de conforto acrescido de uns conselhos. Pediu uma rodela de limão.
Assim retardaría aquele amargo e lembraría a saudade a saír de si a jorros.

sábado, 20 de outubro de 2007

O MISSAL

Fervorosa, trémula, húmida folheia cantos de páginas de papel de arroz amarelecidas por dedos que marcam cruzes como sinais pela face e pelo peito, dobra-se numa prece junto ao coração, a lingua lê palavras contra o céu da boca, aperta-se nos lábios os sons que tremulam velas tortas e desmaiadas pelo calor da chama lançando sombras e vultos sobre véus que cobrem cabeças pendentes na imitação da resignação ao altar-mor.
Marca a oração separando no rosário morno de tanto esfregado as impressões digitais decalcadas no seguir da linha.
Fecha o missal negro debruado a ouro, a sangue na junção das páginas, afaga-o num carinho lavado a desejos, promessas e louvores. Sente-se salva, santa e senhora.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

RABISCOS

Ao abrir a gaveta o colorido dos lápis mordeu-lhe a vista. Ficou parado num tempo a olhá-los a vibrarem no grito de súplica para virem à luz do dia manchar uma qualquer folha branca de papel. Hesitou no escolhido... Mas o berrante vermelho prendeu-se-lhe à mão e bem seguro entre os dedos logo tingiu pulso, braço, subindo vertiginoso até à boca e intruso alastrou-se pelo homem todo.
As outras cores ciumentas agitaram-se e ameaçaram inundar a gaveta fazendo-se perder em mares incontroláveis e misturados, impossíveis de separar o azul-céu e o amarelo-sol.
O homem mergulhou ambas mãos e agarrou as cores num feixe. Sentiu um relâmpago dentro de si, o vermelho ciumento pelejando pela exclusividade, o verde tentando atingir a alma, o branco directo ao coração, uma luta de territórios pela tintura.
Derrubado deixou de se debater. Procurou a folha e rabiscando permitiu que a arte se fizesse.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A HORA DO LOBO

Baixa o sol, fica o vermelho riscado junto à linha que separa a vista e o adivinhado.
Roxos e violáceos contrastam no pastel de fim de tarde. Chegou sedenta e faminta, os predadores ocupados na mesma faina do nutrir dão-lhe a trégua de se mirar em si mesma e aperceber-se dos estragos de mais um dia.
Os olhos hoje ainda não escorreram água nem as mãos se crisparam, só defendeu as costas e escudou-se de sentir.
À hora do lobo já o pode fazer. Já se pode alimentar da paisagem e deixar que as lágrimas temperem o rosto, alimentar-se dos sons de vida que abrandam, despertar para a paixão e descobrir-se renovada nesta hora mágica em que se veste de mulher.

domingo, 14 de outubro de 2007

ÁGUAS

Pediu uma água, traçou a perna e abanou o pé. Não esperava ninguém, apenas olhava os transeuntes apressados, florestas de pernas que se cruzam em passos, apertam os sexos no andar de cá para lá. Pensou quantos quilómetros faríam aquelas pernas até ao final da vida. Veio a água, esqueceu as medidas e as pessoas e perdeu-se no rio, a vista a esticar-se até onde já nada se vê, apenas um risco branco que delimita o azul-verde-cinza de tanta água. A do copo transparente, a do rio opaca que não deixa ver segredos nem o que enterra lá no fundo junto ao lodo. Mergulhou os dedos no copo e passou-os no rosto: quería ver o rio e sentir-se molhada como se nele se tivesse enterrado. Pensou quantos quilómetros podería fazer lá no fundo do rio entre florestas de algas e peixes e restos de barcos que se segredavam entre si como lá tinham ido parar.
Sentía-se um barco naufragado sem leito de água e areia para domir, uma desajustada nas florestas de pernas que fazem quilómetros sem passos sentidos nos sexos apertados, um olhar azul-verde-cinza sem risco de horizonte para contemplar quando a vida se torna lodosa e transparente - só mesmo o pensamento.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

FLORES

Colhía flores, contava ele. E ao explicar as mãos dela tombando aqueles pés verdes e hirtos, parava na voz a comoção de a ter visto, ao longe é certo, mas a visão daquela mulher vergada pela profissão, debruçando-se sobre a terra atingira-o para todo o sempre. Agora já podía dizer que tinha uma recordação, um bocado de vida guardado dentro da cabeça para se socorrer nas horas mortas do tempo.
Colhía flores por cada beijo que dera, continuava ele. E entristecía-se um pouco por não ter sido ele um dos eleitos, um dos beijados na pele da boca, os lábios apertados entre outros lábios, os dela. Agora já podía dizer que tinha esperança, que talvez um dia ela chegasse junto às flores que ladeavam os pés dele e chegasse mesmo, quiçá, a tocar-lhe os lábios nos lábios molhados da sede de tanto se vergar para colher flores.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A LUA

Se de repente a noite se prolongasse para além do escuro, a mulher continuaría correndo, a lua pelas suas costas, ela açoitada pela beleza de prata tentaría que no dorso nada se lhe pintasse, nada a atingisse. Conhecía aquele encantamento, aquela luz que lhe dilacerava na pele o encher das veias e depois bombeadas no coração a injectava de enamoramentos, o correr de pés descalços no encalço da paixão. Sabía-se aquada e perseguida, pois ouvira de outros quartos crescentes o crescendo da dependência do querer e do desejar.
Cansada e num tropeço, bebeu água de uma poça de chuva, de quatro viu a imagem dele disparada pelo luar. Sabía-se presa mas afinal não quería resistir, quería saber a que sabía o cheiro da loucura. Ele tomou-a.
Nasceu o dia.