DEC.LEI Nº344/97

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Escrever é poder amar-te



segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

POR TE CONTAR

Afinal digo-te que um milhão é tão pouco. Que mares e amores dão mais histórias do que aquelas que se possam contar em números e eu tenho fôlego tanto para me mudar em oceano se me continuares a amar.

domingo, 30 de dezembro de 2007

VOTOS

Para o próximo ano não quero nada especial, nenhum sonho dificil de realizar, nem carros nem jóias nem promoções. Não quero ser outra, nem melhor nem pior. Quero um ano novo cheio de coisas que já saiba, um amigo que me prenda a mão, uma flor fora de celebrações, uma chuva em pleno Agosto, o olhar de um estranho, uma velha música trauteada na fila de trânsito, fazer amor ao romper da aurora, tomar um vinho fora da refeição, descobrir palavras em livros esquecidos, adivinhar na lua muitos homenzinhos, ser livre para dizer não e dizer sim, arrepiar-me pela quinquagésima vez com Fred Astaire, chorar porque estou triste e rir porque estou feliz. No fundo, tudo simples. Basta agora que os amigos cheguem, que se lembrem do meu aniversário, que a praia fique deserta, que se deixe de olhar para o umbigo, que haja tempo para a música, que eu me apaixone, que tenha tempo de sentar para comer, que ainda sonhe, que sobre tempo de nada fazer, que me seja permitido ser quem sou, que a vida não me endureça e tudo seja tão simples, tão simples que nos esquecemos.

sábado, 29 de dezembro de 2007

A FESTA

Ai, mas se agora tudo isto é festa que será de mim quando acabar a festa e fores embora dando-me as costas do teu fraque negro, o meu perfume nas bandas e no colarinho, o pó-de-arroz junto à tua face, no bolso guardado o calor da minha mão na tua junto a um lenço que agora diz adeus à festa. Ai, mas se agora danço contigo, os teus olhos vendo no espelho dos meus que verei eu quando ao espelho me despir, sem ti para me desviares a alça do vestido amarrotado de tanto te sentir, trapo enrolado pelo pés do chão que ainda há pouco no beijo tocado me arrancaste do chão. Ai, mas se agora eu me despedaço na solidão da noite que escorre paredes ainda tenho notas de música para me embalar na festa do sonho que quero ter.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

À LAREIRA

Espevitou o lume, um toro rolou encarniçado nas costas picadas. Estalaram algumas faúlhas. Acocorou-se, protegeu o peito junto aos joelhos, os joelhos junto ao queixo, os braços fechando-se num novelo. Ficou assim um tempo perdida, o olhar a nada ver, apenas calor a arder nos olhos, o pensamento a subir com as ondas do braseiro. Suspirou. Inventou-se nua a ser amada no testemunho do fogo, perigosamente perto da queimadura, um quase ferro na coxa de fêmea a marcá-la como posse de um senhor tão viril como aquele lume. Uma pinha libertou o odor da resina com um estalido brilhante e incandescente. Esticou a mão adiante, palma aberta sentindo a fornalha a aquecer-lhe o sangue, fechou-a e já nada tinha de seu, apenas um amornar nas linhas da vida.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

SINTRA (escrever é poder amar-te)

Não me queiras banal, vulgarizada em poucos minutos no harpejo mal tocado da pressa de quem não sabe fechar os olhos por desconhecer a melodia. Quero que me tenhas num quarto fechado ao mundo que do mundo trato eu quando te receber. Pensa-me em Sintra, perdida num tempo em que o romance se vestía de verde e a frescura das palavras contadas ao ouvido tinham o nosso tamanho no tamanho que hão-de ter quando um homem e uma mulher voltam ao pecado original. Eterniza-me no instante da despedida beijando-me as mãos, eu chorarei por ti em cartas longas, definhando-me na tinta aguada de tanta saudade.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

CRER&QUERER

Alternava os dias na euforía dos sentires com a combustão do desejar. Sentía-se enorme, um gigante mal disfarçado entre a pequenez do que algum dia pudesse ter palpitado como amar. Tudo coisa pequena, agora visto à lupa. Dava por si feito em suspiros longos, a mente viajada em desertos onde se achava nos braços dela e ela era a água que bebía e o salvava, cheio até transbordar na humidade dos olhos que sorríam pela dor acarinhada da mão junto ao peito, o receio deste se rachar e escapar-se-lhe tanto sentir... E de outras vezes, a explosão a borbulhar eminente, o ardor na pele, a posse da carne, a fome das formas a consumi-lo no salivar da presa que se precisa primário na saciedade satisfeita e só depois no gosto da prova. Quería-a de todas as maneiras inventadas e mais uma criou quando soube que amar é alma em tudo.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

O PRESENTE

Anda, abraça-me que já deu a meia-noite, quero um beijo também e um sorriso pois então. Agora vamos abrir os presentes, vê o que tenho para ti, nem adivinhas mas estou certa que vais gostar. Então? Pois é, nessa altura o meu cabelo ainda era castanho, escuro com reflexos de ferrugem e comprido, tão comprido lembras? Gostavas de passar as tuas mãos nele e eu sentía-me tão bem nesse carinho especial que me davas... Cortei uma mecha, guardei-a por todos estes anos que temos estado juntos e hoje que o meu cabelo está prata outro bocado hei-de cortar, só tens que entrelaçar a minha juventude naquilo que agora sou e quem sabe?! Talvez daqui a cem anos eu te ofereça outro pedaço e juntos entrelacemos ainda mais as nossas vidas.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O PRESÉPIO

Com cuidado estendeu o musgo húmido, macio como um veludo, alguma terra muito escura a despegar-se entrou-lhe nas unhas, manchou-lhe as curvas e vincos das palmas das mãos: tinha um cheiro fresco, quase a lavado, uma espécie de pureza que não conseguía explicar e que a enebriava numa sensação plena de pertencer a coisa maior. No verde profundo daquele tapete dispôs as figuras de barro toscamente pintadas, pressionou as bases para que se mantivessem erguidas e niveladas, a senhora à direita ele à esquerda, o menino rechonchudo e despido no centro sobre um pequeno bordado que fizera. Olhou, voltou a olhar, suspirou e não entendía o que estava mal. Trocou a posição das figuras mas também não lhe pareceu melhor. Pousou a mão sobre o musgo acamando-o e sentiu-o morno. Colocou de novo as figuras de barro nos pontos iniciais, o menino ao meio sem amparo do bordado, apenas aconchegado ao que viera da terra e o menino ruborizou-se, sorrindo-lhe.

domingo, 23 de dezembro de 2007

MEMÓRIAS DE UM BEIJO

Namorara muito mas já há muito tempo. Não esquecera os beijos, como se beijava de olhos fechados, os lábios levemente apertados entre os outros, húmidos deslizando suave numa pequena rotação em que os narizes se cruzam e mudam de sentido autorizando na boca discretamente entreaberta o tacto da lingua quente. Lembrara-se dos beijos e dos namoros quando ao passar vira beijos e namoros e mãos com olhos que sabíam melhor o caminho que os seus pés. Abrandara, quase parou para ficar a admirar o que nunca vira de si mas tanto sentira.
Teve saudades, um pequenino aperto no peito, porque não namorava agora? Apelou a nomes e faces e a cada um deles os seus beijos, como fora, que pancadas sentira ao sentir-se tomada entre braços que não a deixavam caír, eleger o melhor. Namorara há muito mas lembrava todos, todos únicos, todos especiais, todos os melhores. Apeteceu-lhe pedir que a beijassem, tal e qual como vira quando passara e matar um bocadinho só que fosse desse gosto. Mas como não encontrou resposta para si baixou a cabeça, ajeitou o cachecol ao queixo e escondeu a boca que um dia tinha sido feliz.

sábado, 22 de dezembro de 2007

SEGREDOS

Se de apenas te olhar te pudesse alcançar, todas as léguas, todos os mares se tornaríam pouco da distância que vai do meu bem querer a ti. Faría da palma da minha mão o mundo plano e tu na ponta dos dedos caminharías pelo meu braço acima até atingires o meu ombro, o meu pescoço, puxavas-me para ti e segredavas-me ao olhar o mesmo que eu.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O BOTÃO

Segurou a cabeça entre as mãos e apertou, apertou até sentir as veias da testa a sobressaírem pela força da compressão, os olhos fechados à espera de ver a luz que tanto lhe fugía, talvez a tivesse engolido como um botão como quando era criança e se punha em frente ao sol à espera de o ver dentro da sua barriga, muito redondinho, a flutuar dentro de si, a agitar-se quando pulava ou quando saltava de um ramo de árvore. Mas não, isso tinha sido um sonho, uma daquelas manias que povoam o imaginário dos mais pequeninos e agora o que precisava era de uma solução, um achado, uma chave dentro de si mesma para abrir o seu corpo e descobrir como se faz para não gostar, para não doer. Gostar faz doer. E quanto mais apertava a cabeça mais lhe doía pois mais certezas tinha naquele gostar. Ouviu um tilintar, abriu os olhos, um pequenino botão desprendera-se da blusa e girava no chão num movimento eliptico. Ficou a olhá-lo até este se quedar na sua rotação, apanhou-o e procurou na roupa a sua falta. Era à altura do peito, a meio, onde o coração se encaixava para gostar. E agora sem o botão a blusa descobría tudo, abria-se em duas, provava que afinal um pequenino botão fazía toda a diferença e mesmo que juntasse as duas metades do tecido com as mãos ele voltava a descortinar aquilo que mais quería esquecer.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

CONCHAS

Gosto de conchas do mar, encostá-las ao ouvido e sentir os murmúrios das ondas a segredarem-me histórias de sereias, piratas e naufrágios. Contam-me devagar em tom de lamento, pedem-me que as ouça, guarde para mim e depois as devolva às águas, à sétima onda para na acalmia descansarem de tanto canto entregue a quem as consegue escutar. Às vezes choram saudades. De tanto terem dito e de seguida terem sido largadas no areal. Presas a um sem fim de histórias passadas que no final a tristeza é a maior delas por não voltarem a casa. Sós e perdidas num seco contar que quem as escutou esqueceu a liberdade das palavras e apenas guardou as que quería para si. Um dia hei-de ser concha e hei-de ser livre pois só contarei de mãos que me agarraram e ouviram o canto até ao fim e no fim tanto choraram que me ofereceram um mar só para mim.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O ALMOÇO

Assim que vislumbrou a sua silhueta à contra-luz à entrada do restaurante, ergueu-se, apertou o blazer azul marinho de botões dourados que sentía o adelgaçava, e pousou os dedos da mão esquerda sobre o tampo da mesa, como uma bengala que o amparava perante o encontro. As feições dela tornaram-se nitidas ao aproximar-se, continuava bonita apesar dos pequenos papos que rodeavam os olhos claros, uns pequeninos montinhos de carne junto às rugas que se escavavam desde as comissuras dos lábios, o cabelo não era branco, talvez azulado. Hesitaram no cumprimento, sorriram pelo embaraço e acabaram a sentir a mão um do outro passados mais de vinte anos. Ele ajeitou-lhe a cadeira no gesto cavalheiro, ela baixou o olhar sobre a mesa e deslizou ambas mãos sobre a toalha branca marcando o vinco do limite da superficie.Sorriram mais uma vez, o tempo sem passar, a ementa chegou, ela procurou os óculos e escolheu, ele pediu o mesmo para si, mas apenas porque não lía coisa alguma ao perto e não quería que ela o percebesse. Falaram dos filhos e dos netos, das proezas, de como ocupavam o tempo agora todo para si. Calaram a verdade da emoção de se voltarem a encontrar, a solidão contada dia-a-dia, o amor partido e lembrado num aperto junto ao peito. Despediram-se, um beijo roçado na face, ela reconhecendo a velha colónia muito fresca dele, ele sentindo os cabelos dela a fazerem cócegas sobre o seu nariz. Arrependeram-se. Mas nada disseram, já tinha passado mais de vinte anos.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

A MEIO CAMINHO

Se deres um passo, um só que seja eu até sou capaz de dar dois. Mas o primeiro terá de ser teu, de tua decisão, de teu avançar porque assim a emoção te obriga, o cérebro a pensar que apetece mas não vai e o corpo todo veias de sangue a correr a fazer-se de surdo e a atirar-se para a frente. Agora eu, não penso muito, só quero, desejei, sonhei, inventei frases completas e poéticas para te oferecer às tuas perguntas curtas, acompanhando poses e olhares lentos filmados ao ralenti. Não me lembro de nada, uma borracha apagou-me o gesto ensaiado, só sinto as tuas mãos próximas da minha cara e o rubor de me adivinhares a não te oferecer resistência alguma envergonha-me, atrapalha-me, piso-te desajeitada quando entorto os olhos ao ver a tua boca tão perto da minha, quero pedir-te desculpa mas tu vedas-me qualquer som, tiras-me a respiração.
Deixo-me ir. Já não me lembro quem avançou.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

ARROZ DOCE

Fazía-o como ninguém: suave, cremoso, untuoso, perfumado, colorido naquele amarelo de gemas gordas, largas como pires, as cascas de limão muito finas a espreitarem na mistura borbulhante, sempre à roda, sempre a mexer, tudo leite muito gordo, muito olhar sobre o lume, brando de abrir o arroz, nosso carolino que dobra e é macio. Anunciava as delicias de quem o iría tomar, colher a colher até rapar o seu amor perdido de amores por aquele doce, o açúcar no ponto certo sem enjoo ou amargura. No enfeite o beijo final, esmiuçada entre dedos a canela em pó a desenhar grelhas, flores, rendas perfeitas, monogramas que se entrelaçavam com o que de si oferecía e o sorriso que cobrava. Gabavam-lhe a mão, a maestria artesã de tal remate na refeição. Nem notavam que o que os adoçava era o carinho mexido na panela, os perfumes a pairar no calor de quem faz porque ama.


(À minha Avó F. Sant'Ana)

domingo, 16 de dezembro de 2007

NOITE NA CAPITAL

Enterrou as mãos nos bolsos, o nariz nas golas levantadas, as imagens no peito. Assim, à noite, apenas a sombra a persegui-la pelos candeeiros mortiços do bafo branco do frio parece um animal solitário que cata restos de comida nos caixotes por despejar, colada aos edificios adormecidos no cinzento da hora tardía. Cruza-se com outras pessoas, rostos perdidos na companhia deixada ou na cama quente de abraços vadios. Esta noite não teve companhia nem tão pouco cama a convite, apenas um passar de mãos e braços a roçarem o desconhecido do abismo, um e outro perdidos naquele olhar que ela tão bem conhece: já o viu ao espelho, quando regressa e despe na madrugada o cheiro de fumo e suor, saliva e alcool. As imagens que leva são bocas, dentes, linguas atiradas ao despique da conquista, risos, sorrisos ensaiados para afarpelar a noite de luzes, brilhos e música que ecoa na cabeça entontecida. Depois o silêncio, talvez um e outro pormenor do palato sobre uns lábios mais doces que o habitual. Para além disso não quer lembrar mais nada, outra noite voltará, outros homens e mulheres voltarão a enlaçar-se no fosso da mentira de corpos em comunhão, ela voltará também e no regresso pensará em tudo isto e como faz parte deste logro prometendo a si mesma que será a última vez que sentirá frio.

sábado, 15 de dezembro de 2007

DESCOBRIMENTOS

De cada vez que ela por ele se deslizava, apertava os lábios, os olhos, as mãos como se sentisse dor. Caminhava-o, cego, perdido, pedindo o fim breve para logo se atrasar no repente estático que ela obrigava. Impulha-lhe textos sussurados ao ouvido, prendía-lhe a tensão nas palavras murmuradas sem pontos finais, parágrafos completos de outros mundos e ele cativado na narrativa perdía-se para outro rumo. E lá voltava, salgada do mar dele, arranhando-lhe o torso na areia vincada pelos joelhos dela, apertendo-o nas coxas, amazonicamente fantasiada de contra-luz. A indignação dele arremessava-a para trás, o cabelo molhado chicoteando a pressa da meta. Domava-a então, o sabor do sangue no lábio queimado de lhe ser dele.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

A BENGALA

Abriu a porta, um olho semi-cerrado por detrás das lentes grossas e verdes. É para ver o quarto, não é? É. Virou-lhe as costas e no apoio da bengala escura andou no ressalto como um pneu furado, erguendo-se e diminuíndo, crescendo e minguando, vagarosa, ela atrás a passinhos miúdos no rasto calcado do apoio na passadeira gasta e descolorida. O quarto desvendou-se numa obscuridade e cheiro de perfume velho, é aqui, depois arejo tudo para a menina e acendeu a luz. No toucador uma procissão de fotografias, frascos vazios, bijuteraria brilhando nos vidros coloridos chamas de outros tempos. Acercou-se dos porta-retratos, quem é, se posso perguntar. Quem é?! Sou eu, quem houvera de ser, e era loura, os olhos claros, o pescoço alto de sinal negro na curva que dividía os seios guardados na vertigem do colar de pérolas que se perdía por ventre abaixo, um sorriso picante retocado na mão do fotógrafo, muito vermelho, muito ordinário. E outra, pin-up de ligas, pernas até não acabar mais, mãos sobre os joelhos, a chinela marota de pompom a namorar o torso pendurado adiante. Sentou-se atirada, um ah de alivio ao membro deformado, a cama afundou-se sob o traseiro flácido, alargado, nem sempre fui assim menina, agora é o reumático, as dores, excessos de outros tempos, os dias em que antecipo a chuva e nem me mexo, devía fazer tratamento, passaría melhor, conselho. Já fiz. Fiz todos os tratamentos que devería ter feito quando tinha a sua idade, basta ver as fotografias. Por isso agradeço esta bengala e agitava-a no ar imitando as marjorettes. Aposto que a menina nunca há-de conseguir usar bengala...

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

ESTA NOITE

Esta noite, esta mesma noite peço-te, deita-te a meu lado e não digas nada. Abraça-te a mim e fica assim sossegado, eu a ouvir-te o suspiro pelas confissões que gargarejo, coisa de nada, coisa minha, coisa antiga e aos poucos desato a voz e conto-te histórias. Mil, um milhão talvez, atropelam-se na menina que fui, na rebelde que ainda guardo, na mulher que visto todos os dias.
Sabes que danço quando não estás? Arranjo um par invisivel e na extensão dos braços seguro a mão dele, pouso a minha no ombro, sinto a cintura segura, aqui, sente agora como podes dançar comigo ao som das minhas histórias e ficares tão quieto que se o coração se acelerar mudamos de ritmo, embalo-te no meu corpo encaixada e páro-te no olhar que - sinto - me aquece a cova do ladrão, o cabelo separado em dois pela tua barba roçada. Shhh... não digas nada. Fica só assim, os dois num salão de baile, tu muito elegante a cortejares o meu decote.
Amanheceu. Dormes...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

RESSACA

Dobrou-se sobre si mesma, os braços traçados a prenderem dores sem nome, o rosto pendendo sobre os joelhos. Quando abriu os olhos viu o mundo a fazer o pino. Ou talvez o mundo tivesse passado a ser assim, tudo ao contrário, um avesso de costuras mal terminadas e acabamentos esfiapados que depois do soco no estomago vem o vómito, o rodar da sala, a noticia não acaba com o ponto final e fica sempre aquela moinha danada, perfurante, já pouca da adrenalina do choque quando as palavras esbofeteiam no rosto e atordoam a realidade que parecía eterna, uma secura que não humedece nem à força do choro. A ressaca da dor dói mais que a dor. Traz memórias de tempo sem dolo, comparações de felicidade e agonia e como o bêbado promete-se, promete-se sempre que nunca mais tal voltará a acontecer.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

NÃO GOSTO DE MENTIRAS

Não me afaguem, não me passem a mão na cabeça, tão pouco me agarrem o braço na preparativa da noticia. Sintam-me forma, calor, massa de nervos, grito na dor, riso escancarado nas cócegas nos pés, que eu tenho lugar no mundo e não gosto de mentiras. Magoem-me sem medos na verdade escarrada, desenhem-me a cru, a negro, a vermelho sangue, levantem a crosta rosa e mostrem a ferida dessas palavras que tanto temem, digam que gostam, que não gostam, mas digam de dentro sem me ampararem no cotovelo do rodeio, olhos baixos no pesar enjoado de quem enfeita frases feitas e condoídas, que afinal a maior mentira é a quem ma conta.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

PROFUNDA, LONGA & DEVASSADORAMENTE

Abraçaram-se devagar, apertando-se gradualmente, sentindo aos poucos o calor um do outro, o respirar no ouvido. Depois olharam-se. Profunda, longamente, devassadoramente, abrindo o beijo na boca húmida o desejo do toque, do afagar, do carinho secreto. Num segundo, o gesto lento passou à urgência, multiplas mãos a tactearem relevos, uma mordida arrepiada na carne quente, demasiado quente para suportar a roupa despojada, espólio de vencedor ao tombar. Da vertical faz-se o horizontal, cruzam-se hormonas, cheiros e vontades, pede-se no suspiro a insistência de dedos vorazes, palmas que queimam ao segurar, puxar para si, encaixe perfeito, viagem em movimentos de baloiço, quer-se tudo ali e agora, sustém-se o coração doido no disparo liquefeito da veia que pulsa. Água, orvalho, sudação honram como medalhas o corpo vestido do outro.
Abraçam-se devagar, olham-se semi-cerrados, profunda, longa e devassadoramente. Fala o beijo.

domingo, 9 de dezembro de 2007

COMPANHIA

Atirou com os sapatos de salto 7/5, bateu a porta com força, fechou a semana útil. Deu som ao hifi, ligou o plasma, saltitou num pé e noutro, gritou o refrão sacudindo o cabelo, meneou as ancas frente ao espelho, agitou a água na banheira e mergulhou nas bolhas da respiração. O telemóvel tocou impiedoso. Susteve o ar e deixou o baque do coração disparar até o telefone emudecer. Enxugou-se, untou-se de creme de bébé e vestiu o pijama infantil de ursos de peluche e olhos de vidro. Eliminou a mensagem sem a ouvir. Tirou o CD e silenciou o som da novela. Serviu-se de um copo de vinho branco e mordiscou figos secos, rolando o granulado entre a lingua e o céu da boca. Lembrou-se de números, prazos, projectos e do tailleur cinzento para ir buscar à lavandaria. Suspirou, enroscou-se no sofá e afagou os seios. Depois o ventre, entre coxas, os olhos abertos para as personagens da novela infindindável. Beijavam-se infindavelmente sem esborratar o baton garrido. Fechou os olhos. Tomou o vinho de uma assentada. Arrepiou-se e puxou a manta de viagem para os pés, adormecendo. Sonhou, acordou gelada, desligou a imagem e recolheu-se. Não encontrou o sono, rolou de um lado para o outro, os ursinhos amachucados na insónia quadriculada do pijama, cama fria ali, morna aqui. Regressou ao sofá e ligou a televisão. Embalada pelas imagens das televendas deixou a madrugada chegar e adormeceu a sonhar com um beijo vermelho que nunca se esborratava.

sábado, 8 de dezembro de 2007

A AMIGA

Nem feia, nem bonita. A estável, a disponível, a ouvinte, a compreensiva, a agenda actualizada dos aniversários, o post-it inolvidável, a porta aberta sem hora, o pronto-socorro, a cama-extra, a sorridente, a amiga perfeita. Todos gostavam dela, muito, muito mesmo. Sempre presente, a mão no amparo de qualquer um. Sem se lembrar dela, tudo voltado para fora. Os amigos foram-se juntando aos pares, às casinhas, ao ciclo da vida a rebolar sobre si, um, outro a sobrar, lembraram a amiga. Atiçaram-lhe um par de calças como recompensa de tantos atendimentos. E ela atendeu mais uma vez, esqueceu-se de perguntar ao seu coração se quería, ele foi-se, fizera o jeito, nem bonita nem feia. Deixou de ser nova mas ainda não era velha, os outros todos arrumados, ela a arrumar a sua vida. Quando deu por si não tinha nada de seu.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

SÓ MAIS UM BOCADINHO

Fica... vá lá, só mais um bocadinho, um pedacinho de mim na tua mão, ainda não foste e já tenho saudades de ti. Depois corres rua abaixo e recuperas, só dos meus beijos não há igual, não gostas dos meus beijos? e como penduro no teu pescoço lá alto a vontade de trepar para o teu peito, aninhar-me, murmurar-te palavras que não entendes e pedes que eu repita só para me escutares uma e outra vez no mesmo som dengoso de quem te quer, pedincha sabida de como te agarrar mais pelo coração, prender-te com os teus braços na minha cintura, na anca de osso saído que tu alisas na palma, concha que acomoda o meu sentir arrepiado, guio-te de olhos fechados no óbvio caminho que sabes percorrer. Demora-te. Toma tempo, temos tempo. Afinal a hora foi-se e agora já podes ficar mais um bocadinho, só mais um bocadinho.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

UM RAIO DE LUZ

As mandrágoras recolhíam-se nas suas veias subterrâneas pelo medo da luz e pelo temor a eles.
Em breve o sol rompería sem vergonha, ela sería arrastada por ele mar dentro, sufocando sob o sal, submergindo e mergulhando ao comando ondulado que ele impunha, bravio quase feroz.
Havía vezes que só a profundidade o acalmava e ela decalque dele seguía-o, os olhos muito abertos aguardando o sinal para subir, os cabelos anelados como algas suspensas. Deixavam-se ficar ali os dois, naquele silêncio brutal, a encherem-se de quereres, a vazarem-se de ares. E sem aviso ele disparava até ao céu, ela segura no tornozelo dele, um elo indestrutível. Quando atingíam o topo, ofegantes e cegos de sol, ele tomava o rosto dela entre mãos e devassava-lhe a boca, não dando tempo a que o oxigénio recuperasse lugar. Drogada e nauseada pela insuficiência deixava-se transportar até à areia onde ele de seu lado arfava e ría como um louco.
Era exactamente esse descuido que ela esperava.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

NUMINA

Os antigos Romanos sabíam da coisa. Adeptos fervorosos do endeusamento a tudo aplicavam o poder divino e inatingível a seres, entidades que fazíam crescer e transformar as coisas. E as coisas eram o trigo a crescer, os rios a encherem, uma pedra no caminho. Nada de ícones, pois se estas coisas se alteravam do dia para a noite sem ninguém os vislumbrar na sua obra, como pintá-los? Os Numina eram trabalhadores incansáveis, aranhas invisiveis que operavam com a maior arte teias que sustentavam a crença de que era assim e nada mais. Por isso dei comigo a pensar que devo ter um pequeno numinae dentro de mim. Mais precisamente no meu coração. E nas minhas mãos e também nos olhos e ainda na boca. Pois se isto que sinto crescer e avolumar-se por ti, sem forma, sem cor, sem palpação de coisa que se toque e me faz dizer amo-te e ver-te diferente dos outros e ter vontade de te tocar a pele da boca, tudo isto fazendo-me suspirar e sentir-me feliz, se não são numina é o quê?

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

PREPAROS DE UMA MULHER

Agarrou no cabelo com as duas mãos e puxou-o ao alto. Uma melena despencou-lhe sobre o nariz tapando-lhe o olho maquilhado. Espetou os lábios como para assobiar, a cabeça rodando sobre vários ângulos. Amontou os ganchos na boca e um a um espetou-os no rolo de cabelo comprimido. Puxou uma mecha de cabelo propositadamente, um certo ar negligé dá sempre encanto e cobre aquela ruga traiçoeira que vinca a expressão quando sorri. Agita-se em frente ao espelho, de costas, de lado afagando o ventre, de frente desviando um pouco a alça sobre o ombro. Gosta do que vê, hoje gosta-se, espera que ele goste. Agora é só esperar, ver como será a reacção dele, espicaçar um pouco, aguardar pelo galanteio. E ainda outro, espera muitos, quer surpresa, um comentário único e fora da banalidade do muito bonito. Quer adjectivos em catadupa, uma noite memorável e umas mãos ágeis que lhe desmanchem o cabelo sobre os ombros enquanto a olha nos olhos fixamente.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

APAGAR

Primeiro entre dentes, depois já cuspido, de seguida em grito, acabado no silêncio. Não se lembra agora porque discutiu. Tenta voltar atrás na acção, no inicio, no despencar da compostura, no sitio onde sentiu a ferida a abrir-se. Se no peito, se na barriga. Não recorda, as lágrimas inicíam o seu curso e salgam-lhe a lingua, escorrem pelo ferimento, arde-lhe a alma, não verga o punho. Só sabe que voltou costas, partiu furiosa, os saltos furando a terra, hirta na raiva que se acachapa no coração, não perdoa, não deve rebaixar a sua vontade apenas para concordar. Então deve ter sido isso: não concordou. Ou não foi?... não sabe, não quer saber porque discutiu e porque não concordou, só quer parar esta dor, apagar os momentos que não recorda, voltar atrás e sentir a eminência da repetição do acto para poder evitá-lo, avisar o que vai acontecer e fugirem para longe da separação.

domingo, 2 de dezembro de 2007

OUVIR

Ouço-te no marulhar das paredes vestidas de papel naif quando a noite a borbulhar chega apoderando-se dos ruídos do silêncio. Os móveis de madeira encerada estalam ao calor da tua gargalhada. Repito entoações que me dizem ecos de frases tuas, decoro-as, digo-as para mim, sussurro-as aos objectos de sombras que a luz da lua projecta ao alcance da minha mão: Perto, longe, monstros que de dia me servem agora encolhem-se quando te escuto e avisados, recolhem-se. Não me assusto, sei-te aqui comigo, a tua voz a ressoar no meu peito, o coração descompassado ao verbo mágico conjugado na determinação do pronome pessoal. Levas-me assim até adormecer, embalada na tua voz de ninar, grave de intenção.

sábado, 1 de dezembro de 2007

TRINTA DE UMA VIDA

Apenas 3 dezenas e já apoias o rosto na palma da mão, traças a perna, sorris, franzes a testa, abres os olhos. Tão só um nada de tanto que aqui tenho para ti, ler para ti, contar e fazer sons, imitar mares ao ondular a mão à frente do peito, abrandar no momento dos beijos quase soletrando para que os sintas na tua boca, fechar em punho a violência e a maldade do mundo, não vá tocar-te. Só tens que esperar pelas letras vertidas, por sonhos que nunca contei, pelas imagens que guardo ao passar rápido na cidade, acender a luz quando a escuridão escorrer pelas paredes e nos quiser tomar. Tenho uma vida toda para te contar e um milhão passa tão rápido quanto o pensamento.