DEC.LEI Nº344/97

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Escrever é poder amar-te



segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

POR TE CONTAR

Afinal digo-te que um milhão é tão pouco. Que mares e amores dão mais histórias do que aquelas que se possam contar em números e eu tenho fôlego tanto para me mudar em oceano se me continuares a amar.

domingo, 30 de dezembro de 2007

VOTOS

Para o próximo ano não quero nada especial, nenhum sonho dificil de realizar, nem carros nem jóias nem promoções. Não quero ser outra, nem melhor nem pior. Quero um ano novo cheio de coisas que já saiba, um amigo que me prenda a mão, uma flor fora de celebrações, uma chuva em pleno Agosto, o olhar de um estranho, uma velha música trauteada na fila de trânsito, fazer amor ao romper da aurora, tomar um vinho fora da refeição, descobrir palavras em livros esquecidos, adivinhar na lua muitos homenzinhos, ser livre para dizer não e dizer sim, arrepiar-me pela quinquagésima vez com Fred Astaire, chorar porque estou triste e rir porque estou feliz. No fundo, tudo simples. Basta agora que os amigos cheguem, que se lembrem do meu aniversário, que a praia fique deserta, que se deixe de olhar para o umbigo, que haja tempo para a música, que eu me apaixone, que tenha tempo de sentar para comer, que ainda sonhe, que sobre tempo de nada fazer, que me seja permitido ser quem sou, que a vida não me endureça e tudo seja tão simples, tão simples que nos esquecemos.

sábado, 29 de dezembro de 2007

A FESTA

Ai, mas se agora tudo isto é festa que será de mim quando acabar a festa e fores embora dando-me as costas do teu fraque negro, o meu perfume nas bandas e no colarinho, o pó-de-arroz junto à tua face, no bolso guardado o calor da minha mão na tua junto a um lenço que agora diz adeus à festa. Ai, mas se agora danço contigo, os teus olhos vendo no espelho dos meus que verei eu quando ao espelho me despir, sem ti para me desviares a alça do vestido amarrotado de tanto te sentir, trapo enrolado pelo pés do chão que ainda há pouco no beijo tocado me arrancaste do chão. Ai, mas se agora eu me despedaço na solidão da noite que escorre paredes ainda tenho notas de música para me embalar na festa do sonho que quero ter.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

À LAREIRA

Espevitou o lume, um toro rolou encarniçado nas costas picadas. Estalaram algumas faúlhas. Acocorou-se, protegeu o peito junto aos joelhos, os joelhos junto ao queixo, os braços fechando-se num novelo. Ficou assim um tempo perdida, o olhar a nada ver, apenas calor a arder nos olhos, o pensamento a subir com as ondas do braseiro. Suspirou. Inventou-se nua a ser amada no testemunho do fogo, perigosamente perto da queimadura, um quase ferro na coxa de fêmea a marcá-la como posse de um senhor tão viril como aquele lume. Uma pinha libertou o odor da resina com um estalido brilhante e incandescente. Esticou a mão adiante, palma aberta sentindo a fornalha a aquecer-lhe o sangue, fechou-a e já nada tinha de seu, apenas um amornar nas linhas da vida.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

SINTRA (escrever é poder amar-te)

Não me queiras banal, vulgarizada em poucos minutos no harpejo mal tocado da pressa de quem não sabe fechar os olhos por desconhecer a melodia. Quero que me tenhas num quarto fechado ao mundo que do mundo trato eu quando te receber. Pensa-me em Sintra, perdida num tempo em que o romance se vestía de verde e a frescura das palavras contadas ao ouvido tinham o nosso tamanho no tamanho que hão-de ter quando um homem e uma mulher voltam ao pecado original. Eterniza-me no instante da despedida beijando-me as mãos, eu chorarei por ti em cartas longas, definhando-me na tinta aguada de tanta saudade.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

CRER&QUERER

Alternava os dias na euforía dos sentires com a combustão do desejar. Sentía-se enorme, um gigante mal disfarçado entre a pequenez do que algum dia pudesse ter palpitado como amar. Tudo coisa pequena, agora visto à lupa. Dava por si feito em suspiros longos, a mente viajada em desertos onde se achava nos braços dela e ela era a água que bebía e o salvava, cheio até transbordar na humidade dos olhos que sorríam pela dor acarinhada da mão junto ao peito, o receio deste se rachar e escapar-se-lhe tanto sentir... E de outras vezes, a explosão a borbulhar eminente, o ardor na pele, a posse da carne, a fome das formas a consumi-lo no salivar da presa que se precisa primário na saciedade satisfeita e só depois no gosto da prova. Quería-a de todas as maneiras inventadas e mais uma criou quando soube que amar é alma em tudo.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

O PRESENTE

Anda, abraça-me que já deu a meia-noite, quero um beijo também e um sorriso pois então. Agora vamos abrir os presentes, vê o que tenho para ti, nem adivinhas mas estou certa que vais gostar. Então? Pois é, nessa altura o meu cabelo ainda era castanho, escuro com reflexos de ferrugem e comprido, tão comprido lembras? Gostavas de passar as tuas mãos nele e eu sentía-me tão bem nesse carinho especial que me davas... Cortei uma mecha, guardei-a por todos estes anos que temos estado juntos e hoje que o meu cabelo está prata outro bocado hei-de cortar, só tens que entrelaçar a minha juventude naquilo que agora sou e quem sabe?! Talvez daqui a cem anos eu te ofereça outro pedaço e juntos entrelacemos ainda mais as nossas vidas.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

O PRESÉPIO

Com cuidado estendeu o musgo húmido, macio como um veludo, alguma terra muito escura a despegar-se entrou-lhe nas unhas, manchou-lhe as curvas e vincos das palmas das mãos: tinha um cheiro fresco, quase a lavado, uma espécie de pureza que não conseguía explicar e que a enebriava numa sensação plena de pertencer a coisa maior. No verde profundo daquele tapete dispôs as figuras de barro toscamente pintadas, pressionou as bases para que se mantivessem erguidas e niveladas, a senhora à direita ele à esquerda, o menino rechonchudo e despido no centro sobre um pequeno bordado que fizera. Olhou, voltou a olhar, suspirou e não entendía o que estava mal. Trocou a posição das figuras mas também não lhe pareceu melhor. Pousou a mão sobre o musgo acamando-o e sentiu-o morno. Colocou de novo as figuras de barro nos pontos iniciais, o menino ao meio sem amparo do bordado, apenas aconchegado ao que viera da terra e o menino ruborizou-se, sorrindo-lhe.

domingo, 23 de dezembro de 2007

MEMÓRIAS DE UM BEIJO

Namorara muito mas já há muito tempo. Não esquecera os beijos, como se beijava de olhos fechados, os lábios levemente apertados entre os outros, húmidos deslizando suave numa pequena rotação em que os narizes se cruzam e mudam de sentido autorizando na boca discretamente entreaberta o tacto da lingua quente. Lembrara-se dos beijos e dos namoros quando ao passar vira beijos e namoros e mãos com olhos que sabíam melhor o caminho que os seus pés. Abrandara, quase parou para ficar a admirar o que nunca vira de si mas tanto sentira.
Teve saudades, um pequenino aperto no peito, porque não namorava agora? Apelou a nomes e faces e a cada um deles os seus beijos, como fora, que pancadas sentira ao sentir-se tomada entre braços que não a deixavam caír, eleger o melhor. Namorara há muito mas lembrava todos, todos únicos, todos especiais, todos os melhores. Apeteceu-lhe pedir que a beijassem, tal e qual como vira quando passara e matar um bocadinho só que fosse desse gosto. Mas como não encontrou resposta para si baixou a cabeça, ajeitou o cachecol ao queixo e escondeu a boca que um dia tinha sido feliz.

sábado, 22 de dezembro de 2007

SEGREDOS

Se de apenas te olhar te pudesse alcançar, todas as léguas, todos os mares se tornaríam pouco da distância que vai do meu bem querer a ti. Faría da palma da minha mão o mundo plano e tu na ponta dos dedos caminharías pelo meu braço acima até atingires o meu ombro, o meu pescoço, puxavas-me para ti e segredavas-me ao olhar o mesmo que eu.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O BOTÃO

Segurou a cabeça entre as mãos e apertou, apertou até sentir as veias da testa a sobressaírem pela força da compressão, os olhos fechados à espera de ver a luz que tanto lhe fugía, talvez a tivesse engolido como um botão como quando era criança e se punha em frente ao sol à espera de o ver dentro da sua barriga, muito redondinho, a flutuar dentro de si, a agitar-se quando pulava ou quando saltava de um ramo de árvore. Mas não, isso tinha sido um sonho, uma daquelas manias que povoam o imaginário dos mais pequeninos e agora o que precisava era de uma solução, um achado, uma chave dentro de si mesma para abrir o seu corpo e descobrir como se faz para não gostar, para não doer. Gostar faz doer. E quanto mais apertava a cabeça mais lhe doía pois mais certezas tinha naquele gostar. Ouviu um tilintar, abriu os olhos, um pequenino botão desprendera-se da blusa e girava no chão num movimento eliptico. Ficou a olhá-lo até este se quedar na sua rotação, apanhou-o e procurou na roupa a sua falta. Era à altura do peito, a meio, onde o coração se encaixava para gostar. E agora sem o botão a blusa descobría tudo, abria-se em duas, provava que afinal um pequenino botão fazía toda a diferença e mesmo que juntasse as duas metades do tecido com as mãos ele voltava a descortinar aquilo que mais quería esquecer.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

CONCHAS

Gosto de conchas do mar, encostá-las ao ouvido e sentir os murmúrios das ondas a segredarem-me histórias de sereias, piratas e naufrágios. Contam-me devagar em tom de lamento, pedem-me que as ouça, guarde para mim e depois as devolva às águas, à sétima onda para na acalmia descansarem de tanto canto entregue a quem as consegue escutar. Às vezes choram saudades. De tanto terem dito e de seguida terem sido largadas no areal. Presas a um sem fim de histórias passadas que no final a tristeza é a maior delas por não voltarem a casa. Sós e perdidas num seco contar que quem as escutou esqueceu a liberdade das palavras e apenas guardou as que quería para si. Um dia hei-de ser concha e hei-de ser livre pois só contarei de mãos que me agarraram e ouviram o canto até ao fim e no fim tanto choraram que me ofereceram um mar só para mim.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O ALMOÇO

Assim que vislumbrou a sua silhueta à contra-luz à entrada do restaurante, ergueu-se, apertou o blazer azul marinho de botões dourados que sentía o adelgaçava, e pousou os dedos da mão esquerda sobre o tampo da mesa, como uma bengala que o amparava perante o encontro. As feições dela tornaram-se nitidas ao aproximar-se, continuava bonita apesar dos pequenos papos que rodeavam os olhos claros, uns pequeninos montinhos de carne junto às rugas que se escavavam desde as comissuras dos lábios, o cabelo não era branco, talvez azulado. Hesitaram no cumprimento, sorriram pelo embaraço e acabaram a sentir a mão um do outro passados mais de vinte anos. Ele ajeitou-lhe a cadeira no gesto cavalheiro, ela baixou o olhar sobre a mesa e deslizou ambas mãos sobre a toalha branca marcando o vinco do limite da superficie.Sorriram mais uma vez, o tempo sem passar, a ementa chegou, ela procurou os óculos e escolheu, ele pediu o mesmo para si, mas apenas porque não lía coisa alguma ao perto e não quería que ela o percebesse. Falaram dos filhos e dos netos, das proezas, de como ocupavam o tempo agora todo para si. Calaram a verdade da emoção de se voltarem a encontrar, a solidão contada dia-a-dia, o amor partido e lembrado num aperto junto ao peito. Despediram-se, um beijo roçado na face, ela reconhecendo a velha colónia muito fresca dele, ele sentindo os cabelos dela a fazerem cócegas sobre o seu nariz. Arrependeram-se. Mas nada disseram, já tinha passado mais de vinte anos.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

A MEIO CAMINHO

Se deres um passo, um só que seja eu até sou capaz de dar dois. Mas o primeiro terá de ser teu, de tua decisão, de teu avançar porque assim a emoção te obriga, o cérebro a pensar que apetece mas não vai e o corpo todo veias de sangue a correr a fazer-se de surdo e a atirar-se para a frente. Agora eu, não penso muito, só quero, desejei, sonhei, inventei frases completas e poéticas para te oferecer às tuas perguntas curtas, acompanhando poses e olhares lentos filmados ao ralenti. Não me lembro de nada, uma borracha apagou-me o gesto ensaiado, só sinto as tuas mãos próximas da minha cara e o rubor de me adivinhares a não te oferecer resistência alguma envergonha-me, atrapalha-me, piso-te desajeitada quando entorto os olhos ao ver a tua boca tão perto da minha, quero pedir-te desculpa mas tu vedas-me qualquer som, tiras-me a respiração.
Deixo-me ir. Já não me lembro quem avançou.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

ARROZ DOCE

Fazía-o como ninguém: suave, cremoso, untuoso, perfumado, colorido naquele amarelo de gemas gordas, largas como pires, as cascas de limão muito finas a espreitarem na mistura borbulhante, sempre à roda, sempre a mexer, tudo leite muito gordo, muito olhar sobre o lume, brando de abrir o arroz, nosso carolino que dobra e é macio. Anunciava as delicias de quem o iría tomar, colher a colher até rapar o seu amor perdido de amores por aquele doce, o açúcar no ponto certo sem enjoo ou amargura. No enfeite o beijo final, esmiuçada entre dedos a canela em pó a desenhar grelhas, flores, rendas perfeitas, monogramas que se entrelaçavam com o que de si oferecía e o sorriso que cobrava. Gabavam-lhe a mão, a maestria artesã de tal remate na refeição. Nem notavam que o que os adoçava era o carinho mexido na panela, os perfumes a pairar no calor de quem faz porque ama.


(À minha Avó F. Sant'Ana)

domingo, 16 de dezembro de 2007

NOITE NA CAPITAL

Enterrou as mãos nos bolsos, o nariz nas golas levantadas, as imagens no peito. Assim, à noite, apenas a sombra a persegui-la pelos candeeiros mortiços do bafo branco do frio parece um animal solitário que cata restos de comida nos caixotes por despejar, colada aos edificios adormecidos no cinzento da hora tardía. Cruza-se com outras pessoas, rostos perdidos na companhia deixada ou na cama quente de abraços vadios. Esta noite não teve companhia nem tão pouco cama a convite, apenas um passar de mãos e braços a roçarem o desconhecido do abismo, um e outro perdidos naquele olhar que ela tão bem conhece: já o viu ao espelho, quando regressa e despe na madrugada o cheiro de fumo e suor, saliva e alcool. As imagens que leva são bocas, dentes, linguas atiradas ao despique da conquista, risos, sorrisos ensaiados para afarpelar a noite de luzes, brilhos e música que ecoa na cabeça entontecida. Depois o silêncio, talvez um e outro pormenor do palato sobre uns lábios mais doces que o habitual. Para além disso não quer lembrar mais nada, outra noite voltará, outros homens e mulheres voltarão a enlaçar-se no fosso da mentira de corpos em comunhão, ela voltará também e no regresso pensará em tudo isto e como faz parte deste logro prometendo a si mesma que será a última vez que sentirá frio.

sábado, 15 de dezembro de 2007

DESCOBRIMENTOS

De cada vez que ela por ele se deslizava, apertava os lábios, os olhos, as mãos como se sentisse dor. Caminhava-o, cego, perdido, pedindo o fim breve para logo se atrasar no repente estático que ela obrigava. Impulha-lhe textos sussurados ao ouvido, prendía-lhe a tensão nas palavras murmuradas sem pontos finais, parágrafos completos de outros mundos e ele cativado na narrativa perdía-se para outro rumo. E lá voltava, salgada do mar dele, arranhando-lhe o torso na areia vincada pelos joelhos dela, apertendo-o nas coxas, amazonicamente fantasiada de contra-luz. A indignação dele arremessava-a para trás, o cabelo molhado chicoteando a pressa da meta. Domava-a então, o sabor do sangue no lábio queimado de lhe ser dele.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

A BENGALA

Abriu a porta, um olho semi-cerrado por detrás das lentes grossas e verdes. É para ver o quarto, não é? É. Virou-lhe as costas e no apoio da bengala escura andou no ressalto como um pneu furado, erguendo-se e diminuíndo, crescendo e minguando, vagarosa, ela atrás a passinhos miúdos no rasto calcado do apoio na passadeira gasta e descolorida. O quarto desvendou-se numa obscuridade e cheiro de perfume velho, é aqui, depois arejo tudo para a menina e acendeu a luz. No toucador uma procissão de fotografias, frascos vazios, bijuteraria brilhando nos vidros coloridos chamas de outros tempos. Acercou-se dos porta-retratos, quem é, se posso perguntar. Quem é?! Sou eu, quem houvera de ser, e era loura, os olhos claros, o pescoço alto de sinal negro na curva que dividía os seios guardados na vertigem do colar de pérolas que se perdía por ventre abaixo, um sorriso picante retocado na mão do fotógrafo, muito vermelho, muito ordinário. E outra, pin-up de ligas, pernas até não acabar mais, mãos sobre os joelhos, a chinela marota de pompom a namorar o torso pendurado adiante. Sentou-se atirada, um ah de alivio ao membro deformado, a cama afundou-se sob o traseiro flácido, alargado, nem sempre fui assim menina, agora é o reumático, as dores, excessos de outros tempos, os dias em que antecipo a chuva e nem me mexo, devía fazer tratamento, passaría melhor, conselho. Já fiz. Fiz todos os tratamentos que devería ter feito quando tinha a sua idade, basta ver as fotografias. Por isso agradeço esta bengala e agitava-a no ar imitando as marjorettes. Aposto que a menina nunca há-de conseguir usar bengala...

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

ESTA NOITE

Esta noite, esta mesma noite peço-te, deita-te a meu lado e não digas nada. Abraça-te a mim e fica assim sossegado, eu a ouvir-te o suspiro pelas confissões que gargarejo, coisa de nada, coisa minha, coisa antiga e aos poucos desato a voz e conto-te histórias. Mil, um milhão talvez, atropelam-se na menina que fui, na rebelde que ainda guardo, na mulher que visto todos os dias.
Sabes que danço quando não estás? Arranjo um par invisivel e na extensão dos braços seguro a mão dele, pouso a minha no ombro, sinto a cintura segura, aqui, sente agora como podes dançar comigo ao som das minhas histórias e ficares tão quieto que se o coração se acelerar mudamos de ritmo, embalo-te no meu corpo encaixada e páro-te no olhar que - sinto - me aquece a cova do ladrão, o cabelo separado em dois pela tua barba roçada. Shhh... não digas nada. Fica só assim, os dois num salão de baile, tu muito elegante a cortejares o meu decote.
Amanheceu. Dormes...

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

RESSACA

Dobrou-se sobre si mesma, os braços traçados a prenderem dores sem nome, o rosto pendendo sobre os joelhos. Quando abriu os olhos viu o mundo a fazer o pino. Ou talvez o mundo tivesse passado a ser assim, tudo ao contrário, um avesso de costuras mal terminadas e acabamentos esfiapados que depois do soco no estomago vem o vómito, o rodar da sala, a noticia não acaba com o ponto final e fica sempre aquela moinha danada, perfurante, já pouca da adrenalina do choque quando as palavras esbofeteiam no rosto e atordoam a realidade que parecía eterna, uma secura que não humedece nem à força do choro. A ressaca da dor dói mais que a dor. Traz memórias de tempo sem dolo, comparações de felicidade e agonia e como o bêbado promete-se, promete-se sempre que nunca mais tal voltará a acontecer.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

NÃO GOSTO DE MENTIRAS

Não me afaguem, não me passem a mão na cabeça, tão pouco me agarrem o braço na preparativa da noticia. Sintam-me forma, calor, massa de nervos, grito na dor, riso escancarado nas cócegas nos pés, que eu tenho lugar no mundo e não gosto de mentiras. Magoem-me sem medos na verdade escarrada, desenhem-me a cru, a negro, a vermelho sangue, levantem a crosta rosa e mostrem a ferida dessas palavras que tanto temem, digam que gostam, que não gostam, mas digam de dentro sem me ampararem no cotovelo do rodeio, olhos baixos no pesar enjoado de quem enfeita frases feitas e condoídas, que afinal a maior mentira é a quem ma conta.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

PROFUNDA, LONGA & DEVASSADORAMENTE

Abraçaram-se devagar, apertando-se gradualmente, sentindo aos poucos o calor um do outro, o respirar no ouvido. Depois olharam-se. Profunda, longamente, devassadoramente, abrindo o beijo na boca húmida o desejo do toque, do afagar, do carinho secreto. Num segundo, o gesto lento passou à urgência, multiplas mãos a tactearem relevos, uma mordida arrepiada na carne quente, demasiado quente para suportar a roupa despojada, espólio de vencedor ao tombar. Da vertical faz-se o horizontal, cruzam-se hormonas, cheiros e vontades, pede-se no suspiro a insistência de dedos vorazes, palmas que queimam ao segurar, puxar para si, encaixe perfeito, viagem em movimentos de baloiço, quer-se tudo ali e agora, sustém-se o coração doido no disparo liquefeito da veia que pulsa. Água, orvalho, sudação honram como medalhas o corpo vestido do outro.
Abraçam-se devagar, olham-se semi-cerrados, profunda, longa e devassadoramente. Fala o beijo.

domingo, 9 de dezembro de 2007

COMPANHIA

Atirou com os sapatos de salto 7/5, bateu a porta com força, fechou a semana útil. Deu som ao hifi, ligou o plasma, saltitou num pé e noutro, gritou o refrão sacudindo o cabelo, meneou as ancas frente ao espelho, agitou a água na banheira e mergulhou nas bolhas da respiração. O telemóvel tocou impiedoso. Susteve o ar e deixou o baque do coração disparar até o telefone emudecer. Enxugou-se, untou-se de creme de bébé e vestiu o pijama infantil de ursos de peluche e olhos de vidro. Eliminou a mensagem sem a ouvir. Tirou o CD e silenciou o som da novela. Serviu-se de um copo de vinho branco e mordiscou figos secos, rolando o granulado entre a lingua e o céu da boca. Lembrou-se de números, prazos, projectos e do tailleur cinzento para ir buscar à lavandaria. Suspirou, enroscou-se no sofá e afagou os seios. Depois o ventre, entre coxas, os olhos abertos para as personagens da novela infindindável. Beijavam-se infindavelmente sem esborratar o baton garrido. Fechou os olhos. Tomou o vinho de uma assentada. Arrepiou-se e puxou a manta de viagem para os pés, adormecendo. Sonhou, acordou gelada, desligou a imagem e recolheu-se. Não encontrou o sono, rolou de um lado para o outro, os ursinhos amachucados na insónia quadriculada do pijama, cama fria ali, morna aqui. Regressou ao sofá e ligou a televisão. Embalada pelas imagens das televendas deixou a madrugada chegar e adormeceu a sonhar com um beijo vermelho que nunca se esborratava.

sábado, 8 de dezembro de 2007

A AMIGA

Nem feia, nem bonita. A estável, a disponível, a ouvinte, a compreensiva, a agenda actualizada dos aniversários, o post-it inolvidável, a porta aberta sem hora, o pronto-socorro, a cama-extra, a sorridente, a amiga perfeita. Todos gostavam dela, muito, muito mesmo. Sempre presente, a mão no amparo de qualquer um. Sem se lembrar dela, tudo voltado para fora. Os amigos foram-se juntando aos pares, às casinhas, ao ciclo da vida a rebolar sobre si, um, outro a sobrar, lembraram a amiga. Atiçaram-lhe um par de calças como recompensa de tantos atendimentos. E ela atendeu mais uma vez, esqueceu-se de perguntar ao seu coração se quería, ele foi-se, fizera o jeito, nem bonita nem feia. Deixou de ser nova mas ainda não era velha, os outros todos arrumados, ela a arrumar a sua vida. Quando deu por si não tinha nada de seu.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

SÓ MAIS UM BOCADINHO

Fica... vá lá, só mais um bocadinho, um pedacinho de mim na tua mão, ainda não foste e já tenho saudades de ti. Depois corres rua abaixo e recuperas, só dos meus beijos não há igual, não gostas dos meus beijos? e como penduro no teu pescoço lá alto a vontade de trepar para o teu peito, aninhar-me, murmurar-te palavras que não entendes e pedes que eu repita só para me escutares uma e outra vez no mesmo som dengoso de quem te quer, pedincha sabida de como te agarrar mais pelo coração, prender-te com os teus braços na minha cintura, na anca de osso saído que tu alisas na palma, concha que acomoda o meu sentir arrepiado, guio-te de olhos fechados no óbvio caminho que sabes percorrer. Demora-te. Toma tempo, temos tempo. Afinal a hora foi-se e agora já podes ficar mais um bocadinho, só mais um bocadinho.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

UM RAIO DE LUZ

As mandrágoras recolhíam-se nas suas veias subterrâneas pelo medo da luz e pelo temor a eles.
Em breve o sol rompería sem vergonha, ela sería arrastada por ele mar dentro, sufocando sob o sal, submergindo e mergulhando ao comando ondulado que ele impunha, bravio quase feroz.
Havía vezes que só a profundidade o acalmava e ela decalque dele seguía-o, os olhos muito abertos aguardando o sinal para subir, os cabelos anelados como algas suspensas. Deixavam-se ficar ali os dois, naquele silêncio brutal, a encherem-se de quereres, a vazarem-se de ares. E sem aviso ele disparava até ao céu, ela segura no tornozelo dele, um elo indestrutível. Quando atingíam o topo, ofegantes e cegos de sol, ele tomava o rosto dela entre mãos e devassava-lhe a boca, não dando tempo a que o oxigénio recuperasse lugar. Drogada e nauseada pela insuficiência deixava-se transportar até à areia onde ele de seu lado arfava e ría como um louco.
Era exactamente esse descuido que ela esperava.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

NUMINA

Os antigos Romanos sabíam da coisa. Adeptos fervorosos do endeusamento a tudo aplicavam o poder divino e inatingível a seres, entidades que fazíam crescer e transformar as coisas. E as coisas eram o trigo a crescer, os rios a encherem, uma pedra no caminho. Nada de ícones, pois se estas coisas se alteravam do dia para a noite sem ninguém os vislumbrar na sua obra, como pintá-los? Os Numina eram trabalhadores incansáveis, aranhas invisiveis que operavam com a maior arte teias que sustentavam a crença de que era assim e nada mais. Por isso dei comigo a pensar que devo ter um pequeno numinae dentro de mim. Mais precisamente no meu coração. E nas minhas mãos e também nos olhos e ainda na boca. Pois se isto que sinto crescer e avolumar-se por ti, sem forma, sem cor, sem palpação de coisa que se toque e me faz dizer amo-te e ver-te diferente dos outros e ter vontade de te tocar a pele da boca, tudo isto fazendo-me suspirar e sentir-me feliz, se não são numina é o quê?

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

PREPAROS DE UMA MULHER

Agarrou no cabelo com as duas mãos e puxou-o ao alto. Uma melena despencou-lhe sobre o nariz tapando-lhe o olho maquilhado. Espetou os lábios como para assobiar, a cabeça rodando sobre vários ângulos. Amontou os ganchos na boca e um a um espetou-os no rolo de cabelo comprimido. Puxou uma mecha de cabelo propositadamente, um certo ar negligé dá sempre encanto e cobre aquela ruga traiçoeira que vinca a expressão quando sorri. Agita-se em frente ao espelho, de costas, de lado afagando o ventre, de frente desviando um pouco a alça sobre o ombro. Gosta do que vê, hoje gosta-se, espera que ele goste. Agora é só esperar, ver como será a reacção dele, espicaçar um pouco, aguardar pelo galanteio. E ainda outro, espera muitos, quer surpresa, um comentário único e fora da banalidade do muito bonito. Quer adjectivos em catadupa, uma noite memorável e umas mãos ágeis que lhe desmanchem o cabelo sobre os ombros enquanto a olha nos olhos fixamente.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

APAGAR

Primeiro entre dentes, depois já cuspido, de seguida em grito, acabado no silêncio. Não se lembra agora porque discutiu. Tenta voltar atrás na acção, no inicio, no despencar da compostura, no sitio onde sentiu a ferida a abrir-se. Se no peito, se na barriga. Não recorda, as lágrimas inicíam o seu curso e salgam-lhe a lingua, escorrem pelo ferimento, arde-lhe a alma, não verga o punho. Só sabe que voltou costas, partiu furiosa, os saltos furando a terra, hirta na raiva que se acachapa no coração, não perdoa, não deve rebaixar a sua vontade apenas para concordar. Então deve ter sido isso: não concordou. Ou não foi?... não sabe, não quer saber porque discutiu e porque não concordou, só quer parar esta dor, apagar os momentos que não recorda, voltar atrás e sentir a eminência da repetição do acto para poder evitá-lo, avisar o que vai acontecer e fugirem para longe da separação.

domingo, 2 de dezembro de 2007

OUVIR

Ouço-te no marulhar das paredes vestidas de papel naif quando a noite a borbulhar chega apoderando-se dos ruídos do silêncio. Os móveis de madeira encerada estalam ao calor da tua gargalhada. Repito entoações que me dizem ecos de frases tuas, decoro-as, digo-as para mim, sussurro-as aos objectos de sombras que a luz da lua projecta ao alcance da minha mão: Perto, longe, monstros que de dia me servem agora encolhem-se quando te escuto e avisados, recolhem-se. Não me assusto, sei-te aqui comigo, a tua voz a ressoar no meu peito, o coração descompassado ao verbo mágico conjugado na determinação do pronome pessoal. Levas-me assim até adormecer, embalada na tua voz de ninar, grave de intenção.

sábado, 1 de dezembro de 2007

TRINTA DE UMA VIDA

Apenas 3 dezenas e já apoias o rosto na palma da mão, traças a perna, sorris, franzes a testa, abres os olhos. Tão só um nada de tanto que aqui tenho para ti, ler para ti, contar e fazer sons, imitar mares ao ondular a mão à frente do peito, abrandar no momento dos beijos quase soletrando para que os sintas na tua boca, fechar em punho a violência e a maldade do mundo, não vá tocar-te. Só tens que esperar pelas letras vertidas, por sonhos que nunca contei, pelas imagens que guardo ao passar rápido na cidade, acender a luz quando a escuridão escorrer pelas paredes e nos quiser tomar. Tenho uma vida toda para te contar e um milhão passa tão rápido quanto o pensamento.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

NÃO VOU OLHAR PARA TRÁS

Depois de nos abraçarmos, beijarmos, voltarmos a abraçar, os teus dedos na minha cara a esmagar as lágrimas no borrão do eyeliner desmanchado, de dizermos o quanto nos queremos, as juras repetidas sempre no mesmo tom, as mãos apertadas nas mãos suadas do lenço branco pronto para a despedida, os encontros marcados que sabemos que nunca acontecerão, recomendações como última nota, um telefonema, um sinal, um pedido para todo o sempre recordar, vou andar e não vou virar-me para trás. Não te vou olhar pela derradeira vez, cada vez mais longe do apuro da minha vista, pequeno até ficares apenas um fio, uma linha ao alto que me lembre que do teu calor já me aqueci. Mas não vás. Fica e vê afastar-me, vê como sou tão corajosa...

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

SER DIFERENTE

Defendía sem florear as mãos nem levantar a voz, metía buchas de graçolas de salão a contrastar com a visceral aversão ao cor-de-rosa, pingando muito mais no ameixa ou até no sangue quente que lhe corría nas veias e ondulava nos cabelos sem toque profissional, a sua única e verdadeira razão de ser: Ser. Sem disfarce ou acrescento, livre e libertina, postiço ou trejeito, sem mentira e a bater de frente se assim houvessem razões. Ninguém indiferente, tudo no extremo: Amor e ódios. Estes muitos e variados. Levou a vida a encontrar coisas onde os outros nada achavam e a dar por ninharia grandiosidades construídas pelo mundo. Ousou ser verdadeira e no dia derradeiro amortalharam-na na genuidade com terra grada, não fosse o espirito escapulir-se no perigo da busca de outro hospedeiro.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

INTIMIDADE

Encaixo-me em ti, fechas o meu corpo nos teus braços em cruz, as mãos perdidas no tacto, a tua boca no meu cabelo. Ficamos assim, calados, a acertar a respiração um do outro enquanto escondo os pés frios no enlace das tuas pernas. Sinto-te arrepiado e sorrio. De quando em vez o roçar do teu nariz no meu pescoço. Cheiras-me, sinto o teu peito a empurrar com força as minhas costas, o beijo mole na ponta da minha orelha, faz cócegas. Daqui a nada adormeces, libertas-me, eu procuro o meu lado da cama. Mas acordamos sempre de mão dada.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE

De todo o amor leu tudo o que podía. Nenhum tinha fim porque todos tinham o mesmo fim. Perguntava-se se o amor não é um fim porque sería que de tanto nem um lá chegava?! O amor não é o principio, é o que se atinge e percorre durante. Até ao fim. Porque o fim não tem fim, é infinito, é o amor. Então, melhor não amar: assim nunca havería essa estrada longa para fazer, o amor a termo certo, o amor a prazo, a meta rasgada na separação. Que estranho soía... pois parece que os amantes sabíam desse fim logo à partida, mal davam as mãos e dizíam amo-te e mesmo condenados, o deserto minguava-se ao paraíso, o suicidio da viagem atraía sedutor na envolvência e promissor fim. E depois, aquela legenda sorridente com que se fechavam as histórias, mesmo mortos ou separados, em que todo o alcance do fim tinha sido o fim em si mesmo: amar.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

(OUTRO) SENTIDO

Sabes que estou aqui: ouves-me, sentes-me mas não me vês. Lês-me como se tivesses uma venda macia que te acarinha nas palavras dedilhadas que a ti dedico. Duvidas... será de mim, será de lá esta certeira fundura que se acerca do peito, suspiro que enche a noite, entretém no adivinhar forma, as formas que enchem este vazio sem rosto, crescendo da imaginação. Tentas encontrar-me em verbos escondidos, uma ponta do véu no adjectivo repetido que te leve a compôr uma caracteristica, um sinal perto do queixo, um timbre especial que aporte às cores da terra ou aos frios nórdicos, um mistério descolado das linhas que escrevo.
Estou aqui e sou apenas um outro sentido.

domingo, 25 de novembro de 2007

DOMINGO (escrever é poder amar-te)

Domingo. Hoje não tem que se levantar com a noite mas o vicio dos anos empurra-a para fora da cama. Domingo no robe branco até aos pés, café só para si sem atropelo de choros de crianças sonolentas nem gravatas por ajeitar. Domingo de conversas ciciadas com o cão que arrebita as orelhas ao mimo da boca simulando beijinhos. Domingo de tempo seu gasto numa ronda de pés de lã em que a casa se embala no filtro das luzes amarelas dos candeeiros solitários da rua. Domingo ao solo do galo que esganiça o prenúncio da madrugada em partida. Domingo de segredos em que se senta a desfiar poesia em cadernos de escola forrados a papel de flores. Domingo em que se revela a si na fragilidade confessa do aparo da caneta de tinta permanente escorrendo emoções que aos dias de semana lava, passa e arruma.

sábado, 24 de novembro de 2007

A GUIONISTA

Fechou o livro com força, atirou-o para o canto do sofá e soltou uma palavra reflexiva. Assim não, ficarem separados para todo o sempre, condenarem-se ao exilio da paixão por amor a outros, não! Onde já se viu tão pouca energia depois de tanto se debaterem por um mísero beijo?! Agarrou papel e caneta e desenhou Caro Autor, parou, mordeu a caneta, soube-lhe a canela (canela?! canetas com sabor a canela?) - emendo - plástico, a data, é sempre bom pôr-se a data, pára, hesita no tom, vai chegar-lhe a valer, não, perderá a razão, explanar por pontos como numa reunião, afável no trato para não espantar e nem ler adiante, Caro Autor (já o disse, estou a repetir-me), creio que a visão que tem sobre o amor e um par romântico está completamente desactualizada senão, vejamos: acha que alguém que está completamente apaixonado por um homem não larga tudo para ir ter com ele? e um beijo? UM BEIJO??? Nem sequer uma descoberta do outro, ao fim de sei lá quantos meses andarem naquela conversa de lá para cá sem evolução alguma? Pois deixe-me dizer-lhe que se fosse comigo eles ficavam juntos, sim senhor! E já agora, aviso-o: não vai ter saída nenhuma o seu livro! Passe bem!

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

CASABLANCA

Na tela branca e negra olhou-se bela, lágrimas nos olhos, sem nariz vermelho nem ranho a entupir a fala. Endeusava-se no traje cintado, sem perder a maquilhagem, o fumo em espiral enquadrava-a no ecrã. O piano martelava a dor do desejo mas era sacrilégio escutar, que ao longo do tempo o tempo se torna longo. Murmurava as falas decoradas na lamúria da partida, os braços tiranos do amor a atirá-la para outro, uma ventania a esbofetear os corações separados com as letras deitadas à direita a dizerem fim. Quando as luzes se acenderam entendeu que a realidade não era a dois tons, a solidão tem outras cores e os filmes dos outros podíam ser os seus. Apertou a gabardine e ajeitou o lenço apertado ao queixo. Sentiu uma mão no cotovelo que a acompanhou. Pararam. Ele tombou a cabeça levemente sob a aba do chapéu de feltro e acendeu um cigarro que lhe passou. Alumiou outro para si. Ela deixou que o estranho a tomasse na boca e lhe tirasse o ar. Fechou os olhos. You must remember this, a Kiss is just a Kiss.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

SERÕES DO TEMPO

Quando a chuva tilinta lá fora no varandim de metal da nossa janela e te vejo ataviado no velho roupão de xadrez, olho pelas dioptrias do presente serões de silêncio em que tricotava ano após ano e tu desenhavas ramos de flores, sempre viçosas e muito coloridas. Perguntavas-me se gostava dos teus bouquets e eu respondía-te apontando a agulha, aviva aqui, um contorno mais leve ali. Voltavas aos teus guaches e carvões, eu à camisola sem fim. Feitos os acertos demandavas de novo opinião e eu sabendo que tudo estava na mesma, concordava que assim estava melhor. E a camisola, perguntavas tu, quase a acabar afirmava eu e tu sabías que aquele trabalho havía de permanecer sempre assim, feito e desmanchado, como um ciclo vicioso.
Quando a chuva rejunevesce a terra, olho as tuas aguarelas. Tu dormitas com uma manta de lá riscada que um dia pensou ser camisola.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

KGS DE LÁGRIMAS

Encaixou-se no maple a custo, pernas tentadas na posição de lótus, joelhos como asas e naquele colo a caixa de bombons tão brilhante, pequenas pratas dourada e cereja a arredondarem marrecas de desgosto com sabor a chocolate. Amparou o delirio na cova do ventre quente, mãos hesitantes entre a primeira vitima. Lembrou-se dele, escolheu café: sentiu os dentes a enterrarem devagarinho na crosta e um creme esbranquiçado esvaír-se do seu interior, babar no queixo, pingar o dedo. Encostou a mistura ao céu da boca e sentiu-se aliviada de tanta saudade, a lingua a tactear a mistura, os olhos levemente tombados para a imagem pouco nitida dele. O relevo em ss no chocolate branco identificou o próximo, ela, sinuosa, Verão tão curto para agora alimentar este Inverno, uma boca demasiado faminta para se contentar num cubinho tão pequenino... em que canto do mundo estás tu? Ao terceiro suspirou em praliné, um gosto de avelã a prever o hibernar do amor. Amassou as pratas dos seguintes, já devorados aos pares, ele e ela, uma raiva incontrolável pelo engodo da paixão, o palato alvoraçado e enjoado sem destrinçar sabores doces e o acre das lágrimas a pingarem a caixa já quase vazia. Acabaram. E o choro da culpa engordou-lhe a distância do tempo em que a saudade amarga.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

SENTADA

Sentada está a mulher, sapatos em paralelo, joelhos apertados, coxas unidas, ventre placado, hirta no dorso, pescoço destacado. Roda os olhos de lá para cá. Entrelaça dedos nos seus dedos. Sentada está a mulher, vestido à espera do balouçar, anéis de cabelo para serem tocados, passos ensaiados sem tablado para marcar.
Sentada está a mulher à espera para dançar... ninguém a vem chamar. Mão alguma se aproxima, se estende e lhe indica o salão só para si. Rodopiar, entontecer no braço erguido, aquecer na cintura como um pião puxado, torcer o pé, pisar no outro, desfazer o sorriso no troca-passo, que embaraço!
Sentada está a mulher que espera a noite passar. Dói nos sapatos a falta da dança, joelhos apartados, coxas murchas, ventre vazio de nada bailar. Cai sobre as espáduas, sobra cadeira, dobra o pescoço sobre si inteira.
Mulher sentada à espera do nada.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

DÁ-ME AS TUAS MÃOS

Dá-me as tuas mãos, deixa que as aqueça entre as minhas, lhes faça festas serenamente sentindo a pele a amornar à medida que lhes toco e sinto os pequenos calos que escondes na concha, um outro maior no dedo, uma pequena bossa de quem usa as mãos como ferramentas das letras, tanta linha riscada nas palmas, chamam-lhes caminhos, os teus com ruas principais e depois tanta bifurcação a descobrir bosques, cidades, tanto mar. Tanto amar. Anda, dá-me as tuas mãos, mostra-me como fazes aqueles truques com os dedos a projectar animais na parede quando a luz atravessa as tuas mãos ágeis ganhando vida na vida de outros. Junta-as nas minhas mãos, deixa-me sentir os teus dedos e os nós a atarem-se nos meus num aperto tão quente como as minhas mãos estão agora apenas de tocar as tuas.

domingo, 18 de novembro de 2007

PREGUIÇA

Primeiro os sons. Depois o cheiro, logo a seguir o tacto. Os olhos vão permanecer tranquilos, embalados na água morna dos sonhos que ainda se conseguem lembrar, fechados para guardar as nuvens polposas e brancas para onde voou; daqui a algum tempo a memória apagará tudo e só resta a sensação de conforto de um sono bom. Nas mãos o macio da roupa de cama, algumas engelhas do aconchego dos lençóis puxados ao pescoço, joelhos próximos do ventre, pés traçados retardando o despertar. Abre os olhos, abre, ouve-se dizer. Abriu, fechou, acomodou a retina à luz filtrada do quarto, pestanas a afagarem a vista, não há nuvens brancas, nem voos de pés nus no tule esvoaçante. Eram nuvens? Talvez algodão, bolas de algodão... cama boa, paz, tanto silêncio. Até o apito ondulado do amolador lá fora soa a sonhos. Esconde as mãos em prece junto ao sexo quente, o queixo puxado ao peito, se o amolador soprar o apito de novo levanta-se. Não ouve nada, só o seu respirar, a boca seca, os pés acariciando-se na macieza da pele, o amolador a chamar a chuva. Não se levanta. Se o amolador soou outra vez é porque vai chover e aqui está seco e bom e morno e macio como se a cama fosse de nuvens de algodão. Se fechar os olhos e beber o quarto talvez volte a sonhar.

sábado, 17 de novembro de 2007

A REDOMA

Na maquilhagem densa escondía-se da juventude: Apoiada sobre os cotovelos roçava as costas trajadas de cetim negro e escorregadio no balcão manchado de fundos de copos alcoolizados pelos anos de bocas encostadas aos vicios de confissões perdidas no espelho embaciado das dedadas do barman. Rodava lentamente de um lado para o outro sentindo as pernas escanhoadas na lâmina esbeiçada e ferrugenta deslizarem como um viés, da saia pouco pano, a groselha extra açucarada a tombar em diagonais vermelhos recordava-lhe vagamente que na semana anterior e ainda na outra passada o ciclo da lua não se cumprira e que se fechasse os olhos e continuasse no movimento do pêndulo do relógio tudo se acertaría até chegar ao ponto exacto sem falhas, sem a ausência do cliente novo que viera uma só vez e por quem se encantara no toque das mãos cuidadas. O barman bateu-lhe no ombro a lembrar-lhe a hora de serviço, a moeda adiantada antes de entrar na redoma de vidro a girar e entontecer a roupa de negro no carrossel das peças caídas ao som de uma qualquer musica asmática. Rodava. Rodava a vida, rodava a cabeça, rodavam os pensamentos na embriaguêz descuidada das mãos que não lhe havíam dado tempo de aquecer.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

OS NAUFRAGOS

Apertados nos membros, sufocavam-se nos beijos e nos cabelos longos dela, no embaraço dos lençóis a sobrar derramados pelo chão. Vestíam-se de pele, dedadas, manchas digitais como nódoas negras, um sinal de saliva no ombro, no pescoço uma mordedura rosácea como um escaldão. Olhos fechados, que o caminho fazía-se de cor e na cor do intenso o rumo certo para descobrir janelas de luz. Desliza-se nela a paixão, escorrega nele o passo certo.
Conta-me histórias, sussurrava ele e ela dava-lhe as mãos e fazía-lhe mares para navegar, alterava-lhe marés no ondular das costas, dava-lhe turbulência no apertar das coxas e subía vagas a pique para que ele alcançasse o horizonte.
E agora, gritava ele perto do naufrágio e ela arrastava-se nele salvando-os na praia.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

CINZAS, ANIL E VIOLETA

06.00 PM. Outubro, finais. Desligou o rádio, puxou o travão de mão, descansou o pé, segurou o volante de mãos firmes, dedos espaçados. Parada no trânsito, parada na vida, caminhada sem meta, o ir e vir da rotina, ao lado outros tantos cópia de si. Espreitou o espelho retrovisor, ajeitou-o à borbulha despontada na testa, apertou-a sem misericórdia, atrás, a buzina impertinente e ininterruptamente esmagada sob a palma furiosa pedía-lhe que iniciasse a marcha sem estrada para andar. Agitou os braços ao alto e fez cara feia, espetou o dedo medio frente ao espelho e a buzina respondeu-lhe já rouca. Zangada, blasfemou, aumentou o volume expelido pela garganta, despejou a seguir num berro a incompetência do chefe, o projecto no fundo da gaveta, a malha na meia, a zanga com o namorado, o café frio, a ida adiada para casa. Baixou a cabeça, bateu com a testa no volante e sentiu os cabelos entrarem-lhe na boca. Sentiu necessidade de chorar mas não conseguiu, só arfou de raiva. Devagar ergueu-se, olhou defronte, viu as luzes do carro da frente incendiarem-se e à largura de todo o vidro do párabrisas um céu imenso a entrar-lhe no peito. Riscado a anil e violeta, encimado por uma barra cinzenta, o dia seguía para casa, lento, calmo, uma tranquilidade quase pesada, quase compacta numa hora de despedida. Em breve a noite entraría no seu turno de trabalho tão lenta e calma como o día fechava a porta. De tamanha beleza ensurdeceu à buzina que avisava o reinicio da fila em marcha e agradecida deixou que tranquila as lágrimas apagassem a ira.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

NUTRIR

Falava com os olhos na boca e alimentava a imaginação na flutuação de sons que em ondas caminhavam como plumas magicamente transportadas na bruma até à sua boca. Não ouvía, matava fomes antigas de verbos simples, permitía-se entontecer na companhia de palavras claras e sem outro sentido que não o dito. Uma e outra vez tentou o alcance, a mão para arrebanhar feliz e menino as bolhas de sabão de sete cores, um pico a alfazema, um toque de rosmaninho, um tanto de silêncio, outro de descoberta: palavras, textos da boca completos na escuta de quem fala idêntico esperanto.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

A BOCA

Húmidas e brilhantes, carmim ou rosa chá, arqueadas, polposas, levemente pregueadas, lábios dados, colados, pele roçada, agarrada na prensa morna de outros dois, tomados, sorvidos, tocados, invasão à comissura, molhada, oleada, boca lambuzada, sabor tacteado, beijo repenicado, roubado, sugado, murmurado, fugido.
Tanto beijo sentido numa boca que diz amo-te.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

A BELA

Olho vesgo, cicatriz arrepanhada do pescoço à maçã do rosto, três dedos na mão esquerda, cabeleira desgrenhada até à cinta, a bruxa de negro é o susto dos infantes. E dos adultos que a condenam ao ermo. É feia. É velha. É bruxa. Alguns calam na memória a donzela que fora formosa, e já nesse tempo munida de feitiços maltratava os corações. A nenhum se rendera, esperava pelo amor. Que tardava. A frescura foi-se num Outono frio e chuvoso. Ficou amarga e baça. Dizem que perdeu o tino por não ter perdido a virgindade. Mas é mentira. Quem a perdeu foi um bando de mulheres que a tomou de assalto, lançaram fogo à casa, desfiguraram-na a quente e vazaram-lhe um olho. Deixaram-na no inferno a gritar pelo amor que nunca chegou.
Mas hoje exibe orgulhosamente os dedos que lhe restam; os outros dois cortou-os ela para se salvar do nó em que lhe deixaram a vida naquele dia.

domingo, 11 de novembro de 2007

VICIOSA(MENTE)

De café. De chocolate. De fumo, de fumos, de bebida, de jogo, de meter o dedo no nariz, de coçar a anatomia, de roer as unhas, de comprar, comprar e comprar, de escutar atrás da porta, de iniciar qualquer frase por então é assim.
Nenhum tinha.
Havía-se viciado no cheiro dele. Um só vez bastara e a dependência agarrou-a no gesto de lhe agradar, dobrar-se, pedir, mendigar-se num amor vão que só tinha dias úteis. Idolatrava-o, esperava a altivez do nobre nas migalhas pobres que lhe consumía o olfacto de olhos cerrados, absorvendo aromas dum ser imaginado que perfumara nos desejos mais intimos.
Achou-o por acaso num fim de semana de sol, pendurado noutra mulher. Cheirou o ar próximo e sentiu um odor envinagrado, um pico azedo a comida estragada, encolheu-se, franziu os olhos, levou a mão à boca sustendo a náusea.
Não conseguiu voltar a estar perto dele. Agora de segunda a sexta toma religiosamente um chá às seis da tarde.

sábado, 10 de novembro de 2007

GOOD NIGHT

Tirou o casaco, despiu a vida de fora. Descalçou-se, desceu à terra. Serviu o casal de gatos de uma tijela de ração, outra de leite. O que sobrou bebeu-o da embalagem.Largou o resto da roupa por cima da cama de casal, colcha de renda, herança de uma tia-avó solteira.
Encheu a banheira, juntou-lhe uma mão cheia de sais de banho azul metileno. Escaldou-se ao entrar e aos poucos aguentando o ardor cobriu-se de água. Olhava o tecto, estáctica, alheada de tudo, a água a arrefecer lentamente. A pele arrepiada arrebitava-lhe os seios, a penugem dos braços, a púbis, a solidão de nada mais a fazer a seguir ao banho. Mirou-se gradualmente desde o colo até aos dedos dos pés apoiados pela pressão contra as paredes da banheira. Não se achou defeito, mazela, aleijão ou idade avançada que lhe pregueassem as carnes.
Um gato miou, ela ergueu-se, puxou a tampa preta pelo fio metálico e vazou a banheira. Vestiu o roupão turco, serviu uma tijela de sopa e ligou o microondas, afagou os gatos que se entrelaçaram nas pernas húmidas, retirou a tijela de sopa depois do tlim soar e levou-a à boca. Queimou os lábios mas insistiu, sorvendo, ligou a televisão, apertou o comando automaticamente sem se deter em canal algum. Desligou-a, atirou com a tijela para o lava louça, escovou os dentes, chamou os gatos e deitou-se.
No escuro olhava o tecto estáctica. Sentiu calor, tirou o roupão turco.
Aconchegou-se na roupa de cama nua em posição fetal, uma almofada entre as pernas, abraçou-se ao seu peito e baixinho em conjunto com o ronronar dos gatos entoou good night sweetheart well, it's time to go...

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

ABRAÇA-ME

Vem. Chega perto...
Braços em paralelo estirados ao corpo adiante, as palmas em concha para tomarem no tacto as costas, os ombros, no aperto encostado de toráx contra tórax, o bater do coração descompassado, apressado, doido por entrar no peito que se une fazendo dele o seu novo segredo. Cinge forte, em relevo ossos, carne, tanta pele eriçada no morno esconder, mimetiza-se nas veias o sentir amoroso, esfrega odores em pescoço oferecido a queixo, boca, olhos que devoram olhos, humidas sentinelas que bebem de palavras escondidas o que se entrega no valor de um abraço.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

REQUIEM

Em certos dias perdía a voz, um único som ou respirar mais arranhado conseguía despregar da garganta e mesmo que se esforçasse, as cordas vocais atavam-se em nós e ruído algum se produzía. Não o fazía por intenção: vía o mundo como uma pauta, as notas pretas a destacarem o fundo muito branco dos cadernos de musica, organizadas, linha acima, linha abaixo, cinco ao todo. Sempre o sentira assim. Primeiro sem o entender e sem alcançar porque perdía o som que se agitava dentro do peito, as costelas a vibrarem como um diapasão, a afinação era nenhuma e aquele tormento de colcheias e semi-colcheias a chocarem perturbava-a sem conseguir chegar ao aviso e ao pedido de socorro. Com o tempo aprendeu a engolir em seco e as notas empurradas pela bola de ar inspirada eram atiradas de costas numa tontura que as deixava sem acção por momentos. Mas logo se organizavam e se formatavam na pauta, ordenadamente, o som pronto a ser expelido. Mas não saía. Subíam como vapor até ao cérebro e durante horas, dias atormentavam-na numa sinfonia terrível que lhe dominava a vontade.
O vómito surgiu no dia em que lhe beijaram os lábios. Cuspiu tudo a jorro, em golfadas negras e brancas que sujaram os pés de quem a beijou. Ele horrorizado partiu em debandada e foi incapaz de agarrar as notas caídas e formar uma simples melodia para lhe oferecer.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O FILME

Nos golpes de pestanas não se protegem só os olhos ou se humedece a vista, resguarda-se esta câmara de fotogramas invertidos que lança, na melhor concepção balistica de certeiros sinais ao alvo do coração.
Olha uma vez sem prender atenções, outra para se certificar que nada lhe atingiu, uma terceira para conferir que do outro lado há contacto e a partir daí - se o houve - não há caminho a arrepiar.
Olha, mira, desvia, atira, fixa, brilha, pisca, fecha lento, roda a cabeça, volta de novo, verde, azul, castanho, negro, violeta (ou serão cinza?), lindos, olhos lindos, já não há olhos, há rosto, a boca, a boca cresce desmesuradamente, só uma boca nada mais, reduz, amplia ao pescoço, lateja a jugular, sobe, olhos, sorriem os olhos, um vinco no canto da boca (aquilo é o quê?!Um sorriso?!), plongée, peito trabalhado, desce, desce, joelhos apartados, tornozelo fino, contraplongée, mãos, anéis (?), plano americano, que bonito, foca e fecha: os olhos.
Os teus olhos contaram-me hoje em segundos uma história de longa metragem.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

OVERDOSES DE SILÊNCIO

De um lado para o outro. Ao redor de si. Sobre o seu pensar. Enfiada no sentir. Cristalizada no recordar. Debruçada sobre o adivinhar.
Não digam nada à mulher que ama.
O corpo grita mas é autista ao mundo de fora.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A MULHER, O CÃO E O GATO

Empurra um carrinho de supermercado atafulhado de panos, ao ombro um gato preto luzidio como uma pantera preso numa guita ao seu pulso. Caminha ao lado um cão bicolor, forte, ligeiro no trote, orellhas abanando à medida da lingua rosa pendente.
A mulher ri, ri muito. Tem poucos dentes, muita fala, não se queda no diálogo que empresta ao gato e ao cão. Senta-se no chão e estende as suas tarefas ao redor: remenda, costura sem fim panos e mais panos num afã sem descanso.
Quando pára chama o gato e o cão, descobre dos seus bolsos papéis tão velhos como os tecidos que remenda e do riso faz festa ao oferecer aos seus companheiros pequenos pedaços de pão, fruta, o que houver que tenham desprezado. Não come, alimenta-se das conversas que faz com o gato e o cão.
Empurra um carrinho atafulhado de sonhos, desliza no mundo mágico do devaneio, ampara-se na alma do gato e na fidelidade do cão.
É feliz.

domingo, 4 de novembro de 2007

EXCHOCOLATAÇÃO

Em negros pedaços partidos soou o fundo do calor no banho-maria ao aroma do cacau. Os olhos semi-cerrados na alquimia do sólido para o maleável mexiam em espirais lentas o segredo untuoso. Manteiga: amarelo e negro, levemente salgado, levemente doce, levemente acre, forte tentação no verniz emprestado. Molhou o dedo, chupou quente, a lingua amparando um fio de baba desviado pelo carreiro dos lábios. Uniu as gemas com açucar, espuma dourada. Espesso e forte o chocolate tingiu como um negativo marmoreado a tela da gemada em oitos deitados como sinal de infinito. Inebriou-se no perfume libertado a cada toque, tocou o peito, sentiu a mistura crescer sob as mãos. Agitou frenética as claras até montar um castelo nos seus sonhos, branco, alvo. Envolveu delicada mas decidida, de baixo para cima, em movimentos certos, respirados, os dois polos nivea e negro até atingir o choque. Pequenos furinhos na mousse assemelhavam à sua pele o arrepio da sobremesa pronta a ser comida.

sábado, 3 de novembro de 2007

PONTO PÉ DE FLOR

Quería ter sido médica, mexer em cicatrizes, tendões, orgãos, agulhas, batas brancas, salvar vidas. Mas o pai, austero amputou-lhe a vontade: quer linhas e tesouras, costuras e uniforme vai para a escola aprender bordados. Ela foi. Ela aprendeu. Ela era a melhor. Ela era mestra na arte de coser.
O pai, senhor determinou a sua mão na vontade de outro homem, que tanto talento era dote garantido. Ela foi. Ela aprendeu. Ela era a melhor a pregar botões e a coser baínhas.
Ficou cansada de tanto bordar para os outros e nunca ter salvo nenhuma vida.
Resolveu salvar a sua: bordou nos seus lábios um lindo ponto pé de flor e entregou-se ao mar.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

A LOUCA

As palavras dos outros servíam-lhe na perfeição de um fato feito sob medida mas na lingerie da alma, no avesso do mundo exaltava a cor da loucura. Torcía desejos e vontades em torniquetes amarfanhados pela contrariedade da normalização, socializava-se com pés de cabra sob os linhos das toalhas de mesa e escondía cicatrizes esculpidas a canivete num coração que vía rostos no formato das nuvens felpudas.
Sufocaram-na na militarização da ordem e dos números, ajoelhou sob o cabresto do dever e um dia cheia, a implodir do que a sustinha viva rasgou a roupa, correu nua pela cidade, devorou-se ao escárnio dos que passavam.
Despiu as palavras dos outros e atirou-se no remoinho das suas.
Há quem diga que quando o sol aparece a riscar de laranja o negrume da noite partida a louca grita para que ele nasça.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

TITANIC

O fio hirto do aço penetra na carne, ergue um pedacinho da pele, no vidro tinto um pouco de seiva e agora de uma vez só, lenta e libidinosa empurra o embolo esguichando o liquido incolor. Cerra os olhos, os dentes, as pernas. Arde. Solta no tacto a meia de nylon enrolada como a cobra.
O queixo pende no peso da saliva que lambe nos lábios, mil cores batem nas pestanas maquilhadas a negro, eyeliner na mão firme da manhã, brilhantes nos dedos pingados a beringela nas unhas que se encaixam nos joelhos frios. Solta as pernas, os pés esfregam no tapete kisch de cor rosa bombom os afagos que lhe queimam na falta. Sente-os, sente as mãos num vai-vem. Sorri. Ri. Geme. Quer mais. Sente-se. Na força do toque lateja a ondulação do sofá de couro que range. Agita-se, dobra-se no ventre, sacode o cabelo no golpe de pescoço longo, a tatuagem pisca um olho, encaracola nos sentidos todos os mundos que conhece.
Agora quer dormir, não abre os olhos. A vida passa devagar, tão devagarinho assim, talvez a agarre, não a perca...

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A CONTRABANDISTA

O peso acamava a erva húmida. Não fazía mal, estava habituada a sentir as costas molhadas, o bafo quente e com cheiro de acetona em cima da cara, pelo pescoço. Pensava nele, só pensava nele e alivia-se de outras dores que naqueles instantes não doíam porque as moedas assim ganhas são como outras iguais às do volfrâmio que também lhe pesam nas costas e se escurecem nas mãos de quem procura a carne como a noite caída. Troca o minério e troca o corpo por aqueles que longe de casa sentem saudades. Este já está, o dinheiro na mão, amanhã farinha e açúcar.
Mais uns passos, talvez outro vagabundo da noite apareça. Rondou as árvores, faz-se mostrada, a saca às costas que se mais nenhum vier o minério há-de ir a outro lado.
Um silvo do outro lado chama-a, é ele. É o assobio dele a cortar a escuridão e alumiar-lhe o caminho até ao primeiro beijo da noite. Larga a saca, a corrida leve, o coração disparado, outro silvo, tomba.
Desta vez é ela que aquece a terra, húmida do sangue que corre pela noite fora.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

UMA MULHER NÃO CHORA

Encolhía, engolía na garganta a vontade do gemido, do grito. No castigo encontrava menor dor do que a ordem dada na ponta do dedo, o ultimatum de que se algum soluço soasse a pena sería acrescida.Não chora. Não, não chora, aguenta aí a dor que te dilacera por dentro, seja na injustiça da condenação seja pelo efeito da mágoa por te cercearem o ar dentro de metros quadrados escassos em que o quarto é a prisão.
Lá fora a vida.
Crescía, agigantava-se no tamanho das pernas, mas o coração é sempre do mesmo formato e absorve sempre da mesma maneira a dor e a vida encarrega-se de o tornar pequenino, quase mirrado na hora da partida. Doutras avoluma-o, não cabe no peito tal é o amor que o banha e onde ele vagueia para cá e para lá. Não chora. Não, não chora, cerra os dentes e diz adeus, a mão firme na despedida , seja no breve seja no eterno acenar. Não chora que o amor repete, ecoa dores e a maior é quando o coração explode cá dentro.
E a vida onde está?
Engole sentires, sufoca a saudade, apaga a memória. Segue. Vai em frente, mas lembra, uma mulher não chora.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

SEM PALAVRAS

Sob a luz do candeeiro de leitura revelavam-se os anos da madeira encerada, o embutido de latão que delimitava uma moldura no tampo da secretária mantinha ainda o dourado velho. A um canto um porta-retratos, ao centro um copo de cabedal gravado a ouro atafulhado de canetas e lápis afiados. A mulher alisou o papel de carta, muito fino quase transparente, pautado de linhas azuis desmaiadas. Mandou beijos no final e acrescentou com amor, assinou com rebordos carregados na 1ª e última letra do seu nome. Dobrou em três partes o papel fino e guardou-no sobrescrito que lambeu no triângulo colando o envelope. Afagou na ponta dos dedos o homem jovem que sorri da janela do porta-retratos. Ao alto deixa a carta aí encostada, só se vê o olhar e a testa, desliga o candeeiro, profere baixo até amanhã.
Amanhã voltará a sentar-se à secretária e a mandar beijos no fim da folha de papel fino enquanto sorri e afaga o vidro frio do porta-retratos que tem a fotografia do homem jovem.
Um dia alguém abrirá aqueles montes e montes de cartas e apenas lerá beijos com amor e o nome da mulher sobressaído a tinta grossa na 1ª e última letras. Nenhuma saudade, data ou pergunta encontrará na carta em branco.
As palavras esgotaram-se quando ele partiu.

domingo, 28 de outubro de 2007

RETRATO A PRETO E BRANCO

Há um mistério indecifrável na vida dela, um tesouro sem forma e cheio de conteúdo, adjectivos são todos aquém do que carrega.
A mulher que caminha vai leve e tão cheia, beleza e suavidade perfumam no halo que a protege o espaço entre o mortal e o centenário. Leva flores no rosto, águas do ventre que a fazem mitologia e dos pés raízes que a cravam na terra como se árvore fosse.
A mulher que foi não é mais.
A preto e branco nas tranças apertadas sugou tempos a outras gerações e agora espalmada e horizontal ainda fica menina, ainda o esquife se torna álbum de fotografia.

sábado, 27 de outubro de 2007

O 5º SEGREDO

Ela contou um, dois, três, quatro vezes em allegro numa nota de sol. Ele batía o pé ao ritmo dos segredos vertidos, no coro sorrisos, um gargalhar suspenso nas palavras saídas em bafos. Interrogações e ligeiros pedidos no solfejo gargarejado, travessão nas seis cordas para escutar ao coração.
Ela ouvía musicas dentro de si que fazíam passos andados vibrarem. Ele escutava musicas dentro dele que mais ninguém regía.
E quando se veneraram um no outro o 5º segredo fez-se amor: ela dançou o som que ele ecoava dentro de si.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

ESCREVER (é poder amar-te)

Primeiro inclinou-se sobre a mesa, um gesto dedicado para melhor se debruçar sobre ele. Escreveu-lhe um rosto, olhos rasgados e boca cheia. De seguida inventou-lhe as mãos de dedos longos e de nós perfeitos numa pele levemente acetinada que subía braços arriba até ao implante de um dorso seco ligeiramente aconcavado nas costelas contadas. Sem fim descreveu-lhe às pernas.
Rectificou a pontuação como uma especiaría tirada de um barco de piratas. Leu-o, provou-o, sorriu e gostou.
Afagou na palma o vinco das letras iniciando o ritual dos preliminares.
No avanço da narrativa recebía o prazer do texto, deixava-se ir, quería-se tomada.
E tanto desejo sentiu que na cópula mergulhou nas letras e fez-se linhas junto a ele.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

COMO UM ABACAXI

Cara fechada, séria, o sobrolho esquerdo arqueado na apreciação critica, voz colocada nas certezas do dizer, gesto marcado, passos fortes e vibrantes. Uma bolha rodeava-a.
Mas aquele que conseguiu chegar-lhe descobriu-lhe na semelhança do abacaxi a dureza da casca, o espinhento dos losangos como armadura contra as emoções, a rama de serrilha pronta a desferir logo que a ameaça se chegasse próximo.
Perfurou-a de paixão até atingir a polpa dourada, macia, o melaço pingando até à coluna circular e que aguentava uma carne suculenta cheia de carinhos e desejos.
Comeu, saciou-se, melou-se no suco amarelo.
Depois fartou-se. Vieram as moscas patinhar no miolo, a casca manchada de pisaduras, a rama murcha.
E ela aberta, escachada no polme azedou.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

MAIS RÁPIDO

Às vezes deixava que o azul-china lhe tingisse o indicador e o polegar: ficava a admirar-se naquele borrão que alastrava lentamente permitindo uma maior visibibilidade das linhas das impressões dos dedos como um mapa topográfico impresso na pele. Conseguía ler montes e vales, depressões, uma pequena falha na crosta provocada por um golpe feito pela lâmina afiada de uma folha de papel... ardía, ardía muito como se a dor fosse insuportável e de dentro do peito, da barriga. Sabía que ardía porque o papel tem composto de cal e é isso que faz arder. Mas que interessa a cal e o composto se a folha só serve para ser sacrificada às palavras, cortar dedos descuidados e gulosos e ainda aparar os borrões tingidos na polpa do indicador?
Às vezes recheava folhas e folhas e o afilhado lía, com muitas paragens, como se faltassem bocados, palavras de união entre o sentir e o pensar, o querer e o agir. Ela arrancava-lhe as páginas da mão à bruta e desfiava os textos sem paragem, uma melodia completa sem o embaraço da paragem para respirar. Suspirava no fim, cansada, feliz.
E o afilhado retomava a leitura e achava-lhe fendas, depressões como um terreno acidentado em que ora se encontra pedra ora se nada no lago.
É que as mãos não eram rápidas o suficiente para apararem tanto pensamento.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

PRINCIPES&PRINCESAS

Malha, laçada, malha, deixa caír, laçada, apanha duas, malha, conta-me uma história, que história queres tu que te conte, laçada, malha, deixa caír, uma de principes e princesas, ah de principes, sim e também de princesas, está bem, laçada, era uma vez uma princesa que sonhava com um principe, e o principe não sonhava com ela, não, só a imaginava de vez em quando como nas histórias, apanha duas, malha, e depois, bom depois um dia encontrou-a num reino tão perto, tão perto, tão perto que se fazía longe, não percebo, malha, laçada, quer dizer que ele já conhecera muito reino menos o que estava junto ao seu coração por isso não lhe dava grande valor, deixa caír, e depois, depois encontraram-se num dia de chuva e abrigaram-se os dois num tronco oco de uma árvore, o que é oco, é o que espera ser ocupado, cheio, recheado, laçada, apanha duas, e depois, depois olharam-se nos olhos e ficaram com os corações colados dentro da árvore e a árvore voltou a ter um tronco forte que podía suportar ventos e tempestades, malha, malha, laçada, oh conta outra história de principes e princesas, não posso, apanha duas, porquê, malha, porque assim quando fores grande vais saber onde está o teu principe de encantar e não é numa história, malha, laçada, malha... PORQUÊ?

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

COM LIMÃO

Tinha saudades.
Engolía na secura da ausência silêncios que se assemelhavam a bolas de algodão e no nervoso dos dedos enrolava mechas de cabelo em espirais que recomeçava e recomeçava num sem-fim, como se de algum modo apertasse o tempo e a longura dos dias se abreviasse até à ponte do reencontro.
Num momento soluçou, tombaram lágrimas em catadupa, o lábio debaixo a tremer num frémito, os dentes armados em barragem e depois o berro, o abrir de tudo: Desde o coração até ao som agudo incontido na dor da saudade.
Chorou como as crianças, batendo em si própria, a sacudir-se em espasmos, o ruído alojado nos pulmões a saír como um silvo que vai longe até morrer e volta depois poderoso.
Acercaram-se dela, perguntaram pela aflição. Ela sentía-se aliviada, quase renascida, libertada com tanta explosão de sentires sem contenção.
Trouxeram-lhe um copo de água, deram-lhe umas palmadas nas costas à laia de conforto acrescido de uns conselhos. Pediu uma rodela de limão.
Assim retardaría aquele amargo e lembraría a saudade a saír de si a jorros.

sábado, 20 de outubro de 2007

O MISSAL

Fervorosa, trémula, húmida folheia cantos de páginas de papel de arroz amarelecidas por dedos que marcam cruzes como sinais pela face e pelo peito, dobra-se numa prece junto ao coração, a lingua lê palavras contra o céu da boca, aperta-se nos lábios os sons que tremulam velas tortas e desmaiadas pelo calor da chama lançando sombras e vultos sobre véus que cobrem cabeças pendentes na imitação da resignação ao altar-mor.
Marca a oração separando no rosário morno de tanto esfregado as impressões digitais decalcadas no seguir da linha.
Fecha o missal negro debruado a ouro, a sangue na junção das páginas, afaga-o num carinho lavado a desejos, promessas e louvores. Sente-se salva, santa e senhora.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

RABISCOS

Ao abrir a gaveta o colorido dos lápis mordeu-lhe a vista. Ficou parado num tempo a olhá-los a vibrarem no grito de súplica para virem à luz do dia manchar uma qualquer folha branca de papel. Hesitou no escolhido... Mas o berrante vermelho prendeu-se-lhe à mão e bem seguro entre os dedos logo tingiu pulso, braço, subindo vertiginoso até à boca e intruso alastrou-se pelo homem todo.
As outras cores ciumentas agitaram-se e ameaçaram inundar a gaveta fazendo-se perder em mares incontroláveis e misturados, impossíveis de separar o azul-céu e o amarelo-sol.
O homem mergulhou ambas mãos e agarrou as cores num feixe. Sentiu um relâmpago dentro de si, o vermelho ciumento pelejando pela exclusividade, o verde tentando atingir a alma, o branco directo ao coração, uma luta de territórios pela tintura.
Derrubado deixou de se debater. Procurou a folha e rabiscando permitiu que a arte se fizesse.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A HORA DO LOBO

Baixa o sol, fica o vermelho riscado junto à linha que separa a vista e o adivinhado.
Roxos e violáceos contrastam no pastel de fim de tarde. Chegou sedenta e faminta, os predadores ocupados na mesma faina do nutrir dão-lhe a trégua de se mirar em si mesma e aperceber-se dos estragos de mais um dia.
Os olhos hoje ainda não escorreram água nem as mãos se crisparam, só defendeu as costas e escudou-se de sentir.
À hora do lobo já o pode fazer. Já se pode alimentar da paisagem e deixar que as lágrimas temperem o rosto, alimentar-se dos sons de vida que abrandam, despertar para a paixão e descobrir-se renovada nesta hora mágica em que se veste de mulher.

domingo, 14 de outubro de 2007

ÁGUAS

Pediu uma água, traçou a perna e abanou o pé. Não esperava ninguém, apenas olhava os transeuntes apressados, florestas de pernas que se cruzam em passos, apertam os sexos no andar de cá para lá. Pensou quantos quilómetros faríam aquelas pernas até ao final da vida. Veio a água, esqueceu as medidas e as pessoas e perdeu-se no rio, a vista a esticar-se até onde já nada se vê, apenas um risco branco que delimita o azul-verde-cinza de tanta água. A do copo transparente, a do rio opaca que não deixa ver segredos nem o que enterra lá no fundo junto ao lodo. Mergulhou os dedos no copo e passou-os no rosto: quería ver o rio e sentir-se molhada como se nele se tivesse enterrado. Pensou quantos quilómetros podería fazer lá no fundo do rio entre florestas de algas e peixes e restos de barcos que se segredavam entre si como lá tinham ido parar.
Sentía-se um barco naufragado sem leito de água e areia para domir, uma desajustada nas florestas de pernas que fazem quilómetros sem passos sentidos nos sexos apertados, um olhar azul-verde-cinza sem risco de horizonte para contemplar quando a vida se torna lodosa e transparente - só mesmo o pensamento.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

FLORES

Colhía flores, contava ele. E ao explicar as mãos dela tombando aqueles pés verdes e hirtos, parava na voz a comoção de a ter visto, ao longe é certo, mas a visão daquela mulher vergada pela profissão, debruçando-se sobre a terra atingira-o para todo o sempre. Agora já podía dizer que tinha uma recordação, um bocado de vida guardado dentro da cabeça para se socorrer nas horas mortas do tempo.
Colhía flores por cada beijo que dera, continuava ele. E entristecía-se um pouco por não ter sido ele um dos eleitos, um dos beijados na pele da boca, os lábios apertados entre outros lábios, os dela. Agora já podía dizer que tinha esperança, que talvez um dia ela chegasse junto às flores que ladeavam os pés dele e chegasse mesmo, quiçá, a tocar-lhe os lábios nos lábios molhados da sede de tanto se vergar para colher flores.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A LUA

Se de repente a noite se prolongasse para além do escuro, a mulher continuaría correndo, a lua pelas suas costas, ela açoitada pela beleza de prata tentaría que no dorso nada se lhe pintasse, nada a atingisse. Conhecía aquele encantamento, aquela luz que lhe dilacerava na pele o encher das veias e depois bombeadas no coração a injectava de enamoramentos, o correr de pés descalços no encalço da paixão. Sabía-se aquada e perseguida, pois ouvira de outros quartos crescentes o crescendo da dependência do querer e do desejar.
Cansada e num tropeço, bebeu água de uma poça de chuva, de quatro viu a imagem dele disparada pelo luar. Sabía-se presa mas afinal não quería resistir, quería saber a que sabía o cheiro da loucura. Ele tomou-a.
Nasceu o dia.