DEC.LEI Nº344/97

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Escrever é poder amar-te



sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

QUANTAS?

Já te contei quantas histórias? Muitas e tantas ainda para te inventar, mais de mil noites a sonhar o que te vou dizer, manter-te acordado e preso à minha lingua que desata sons em palavras seguidas sem paragens para achar fios que unam elos e estes se façam correntes de histórias pequenas como cerejas que se debicam no gosto nunca satisfeito até avermelharem a vontade de se ouvir mais e eu tenho mais, tenho todas as que tu quiseres ouvir mesmo que no receio me perguntes sempre se já acabou e eu como resposta apenas te conto outra e tu ficas mais um pouco.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

LIGA-ME

Trim, trim diz o telefone e eu digo és tu e tu dizes olá, soa a tua voz na melodia do sorriso que tombo de lado, cabeça encostada à tua boca que me pergunta como estou, estou a ouvir-te, a matar um pouco desta saudade e a deixar o coração bombear mais querer, descompassado nas tuas palavras que peço para repetir apenas no capricho de as ouvir uma e outra vez, que entender entendi-as à primeira mas quero tanto ouvir-te dizer que te lembraste de mim, que hoje não te saio da cabeça e que importante mesmo é saber que eu estou aqui, tu aí a dizer fala, fala mais para eu te guardar no peito e na memória e levar esse som e essas frases que reticentemente entrecortamos no riso de se ficar feliz mas também no adivinhar, na esperança de hoje te ouvir dizer e tu me escutares o que guardamos para declarar um ao outro quando juntos estivermos e até lá mando-te beijos, muitos e tu um só, especial como uma única flor que se oferece.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

INFANTIL (OU NÃO)

Se um dia te perderes põe as mãos em concha e sopra, não precisas chamar o meu nome, irei ao teu encontro assim que a brisa me fizer chegar o teu hálito. Eu desenho um arco-íris para te servir de estrada, basta que tragas os sonhos eu puxo as nuvens para descansares depois da caminhada. Não estás sózinho nem perdido, o meu coração orienta-te como uma bussola marcada norte e tão mais forte o ouças mais perto estarás de mim. Só tens de acreditar, mesmo que isto pareça uma história de crianças ou uma invenção demente de quem te quer ver sorrir e te entretém nas palavras como o vicio de quem ama.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O CHEFE

Jantar bem servido e bem regado, muita conversa e risos, palmas aquando da entrada dele, abraços, palmadas fortes sobre as espáduas no tom de ser cá dos nossos, apertos de mão prolongados e protegidos com a outra, tossicados pelo momento solene e alguma emoção que não transborde na lágrima pois isto é coisa de homens e quem tanto deu e por tanto tempo só merece que todos se comportem à altura. O relógio com a gravação datada e agradecimento ao chefe culmina com a festa de sexta-feira, todos querem ir à sua vida, faltam as palavras deste a louvar o esforço sempre desmedido de todos e o quanto aprendeu tornando-o num homem melhor. Gritam-se apoiado, boa, uma ou outra gargalhada que o discurso vem ensaiado há muito e alguma brejeirice calha sempre bem para aliviar o momento e prender a atenção dos que já se perguntam onde tomar um copo e ver umas gajas pela esticada da noite. Vai-se este e o outro que ocupa o seu lugar é tão canalha quanto este o foi, mas sempre se há-de achar o que se foi bem melhor do que este alguma vez será. Até ser a vez deste também partir e ser substituído por outro.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

GRITOS AO VENTO

Há uma ira escondida dentro do peito que a empurra como uma mola de um mecanismo pronto a ser activado. A raiva alojada mistura-se com os diferentes estádios que vão desde o punho fechado até ao convulsivo do choro, da fala disparada até ao silêncio pantanoso e tudo mina, tudo infecta, tudo alastra por si e a amarga na boca e nos olhos mas muito mais no sentir-se devorada neste mundo que a engole. Revolta-se, agita-se, esbraceja e abana a cabeça, abre as goelas ao universo e berra, tanto que a voz lhe escapa ao vento. Sente-se calma num repente, ouve o mar e o piar triste das gaivotas, não está sózinha.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

COLORIR (É PODER AMAR-TE)

Desenfreada, a ânsia na ponta dos dedos, os olhos vivos, a ponta da língua no afã da busca: Onde parava o maldito cartão? Abría e fechava gavetas, voltava a abri-las, remexía do fundo para o topo, deslizava papéis, fitas de embrulho, fotografias de cantos quebrados e nada. Começou a sentir-se desesperada e até incerta quanto à existência real de tal cartão, talvez uma partida da memória, talvez nunca tivesse existido... Olhou a gaveta desarrumada e empurrou à bruta os papéis para o seu interior, um teimoso não se acamava junto aos outros e impedía a gaveta de voltar ao seu nicho. Puxou o papel tingido de amarelo, vários vincos e dobras diminuíam-lhe o tamanho, olhou-o e fez contas a quantos anos tería aquele desenho formado de riscos tortos e bolas a fazer de sóis e flores e cabeças juntas: uma dela outra do seu principe encantado. Ao canto em cima o astro-rei, único rabisco colorido a amarelo forte como oiro. Sorriu, havía encontrado o seu principe nesta vida. Procurou os seus lápis de tons fortes e esquecida do cartão coloriu as duas figurinhas juntas e ainda as flores que salpicavam o seu desenho de infância.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

DECIDIR

Fechou as malas e encostou-as no canto do quarto. Depois tomou banho e vestiu-se. Aprumou a mão no eyeliner e no baton. Sentou-se à espera dele. Quando ele chegasse ela dir-lhe-ía que não quería mais aquela vida para ela e partiria de vez. Que falassem dela e do abandono do lar, da vida boa que largava com empregada e tudo, do marido garboso e bem falante como poucas tinham. Mas ela trocava isso tudo por uma noite dormida ao lado dele, sem esperar que o som do carro a chegar lhe dissesse que eram quatro da madrugada ou no virar das peças de roupa ao avesso o estomâgo lhe voltasse ao contrário por descobrir uma carteira de fósforos de uma casa da noite. Correu os olhos pela sala e decorou cada objecto pousado sobre os móveis, a cor dos cortinados, a maciez do estofado do maple, a caixa de costura deixando o bordado espreitar uma bainha italiana de fios contados. O bébé chorou. Ela despertou da sua letargia e acorreu-lhe, sossegou-lhe o pesadelo, limpou o baton às costas da mão e beijou-lhe a testa quente sussurando-lhe já passou. Depois foi ao quarto e fez escorregar as malas para debaixo da cama.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

EVOLUÇÃO

Afirmas-te como um romântico e sorris como se isso fosse defeito ou pecado a esconder, digo-te eu que aprecio-o, envergonhas-te a sentires que és coisa fora de moda mas sempre te repito que a candura dos gestos e o doce do olhar nunca enjoam, nada de embaraços, para quê desprezar o movimento das mãos no oculto de bolsos se eu até sou amante de mãos, dedos, rasgos profanos que escaldam o corpo e atingem cá dentro e nas palavras, tantas palavras suaves que tu sabes deslizar devagar, a sentir se eu sinto que queres que eu sinta. Claro. Limpido na forma como dizes que me queres sem seres o óbvio, muito mais subtil e brutal o teu olhar que nos olha já a dois, a um. E afinal nem saímos daqui, tomamos café como dois amigos que trocam episódios, apenas eu, apenas tu sabemos o que se passa.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

REBUÇADOS

Mais uma madrugada recolhida nas notas amachucadas no fundo da bolsa coberta de lantejoulas vermelhas, pequena, capaz o suficiente para esconder o baton de cor ameixa, a protecção fina, alguns cigarros soltos, a chave de casa e rebuçados de fruta. Chupava-os na amargura pós-venda, enquanto endireitava as meias de renda negra que nunca tirava para os clientes e porque assim poupava tempo na partida e enganava a fome como houvera enganado o freguês baboso do muito amor negociado. Guardava os papéis de celofane e ao nascer do dia no regresso manco a casa somava-os fazendo uma contabilidade de quantos havía de limão e quantos de violeta, puxava do palato e atribuía a cada dinheiro esgalhado um sabor. Penalizava-se entre cores e prometía-se na noite seguinte mais nenhum contar.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

FLASHBACK

Abrandou o passo e mirou-a, ruína de anos e de anos sem hábito de vida, até a aldraba de mão fechada enferrujara encostada à porta descascada de tinta verde-água que fora trespasse para o pátio onde brincara, correra e tantas vezes caíra, cordas cantadas no ritmo batido no chão, folhos de saias sobre saias que saltavam ao som da voz na lenga-lenga imitada de tabuadas perdidas e laçarotes engomados em tranças apertadas pela serviçal de olhos doces que a chamava de minha menina e lustrava no peito do avental a maçã pecadora que ao intervalo da escola lhe havía de clarificar a voz para gritar pelas outras de cabra-cega. Abrandou o passo, firmou-se na bengala encastoada a prata.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

RASTO

Perderes-te de mim não acontecerá jamais, para qualquer lado onde vás tens-me contigo, as memórias de cervejas batidas no brinde a muitos anos e até mesmo o tamborilar na mesa a entrecortar as palavras seguidas que me fazías recitar-te por força de me gostares apenas de me ouvir, e eu falava, falava sem parar e sem gaguejar pois escrevera o texto dentro de mim na vontade que te tinha em que me olhasses mantendo-me despida de outros atavios que não fossemos nós os dois. Tu acreditavas, pela primeira vez acreditavas que a felicidade não era coisa de outros, estava ali ao nosso dispôr, nas nossas mãos que enredavam segredos que só deixávamos gotejar com medo de nos sujarmos. Assustaste-te, demasiado grande, enorme, imenso este sentir, fugiste de ti. De mim não: as minhas palavras vão sempre seguir-te para onde quer que vás.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

COGITUM

Do bafo frio e húmido do nevoeiro branco não distinguía contornos, apenas manchas que sabía serem pontes, viadutos e até o rio, de quando em vez as luzes vermelhas nas traseiras dos automóveis incendiavam-se e davam-lhe pontos de referência. Abeirou-se da extremidade do muro do terraço e olhou lá para o fundo, um tapete fofo como claras batidas em castelo que escondíam o negrume desbotado do asfalto. Sabía que era alto mas agora parecía convidá-la a descer rápido até à rua, andar, desaparecer no meio do nevoeiro que lhe encaracolava os cabelos, uma aventura que lhe fizesse esquecer a ausência e a imensidão do mundo quando se está só e se tem pensamentos tão bizarros como este.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

DESSE LADO

Ouves tu o mesmo que eu? Vês daí a lua gorda e amarela lá no alto, uma dedada no azul escuro a guiar barcos e namorados? Se eu daqui soprar sentirás o meu hálito? Ou pensarás que é a brisa da noite quando no Estio abres portadas e deixas o fumo do teu cigarro subir a direito e depois embrulhar-se num rodopio porque te perdes nas asas das cigarras a esfregarem-se atraíndo outras no canto zumbideiro que nos deixa zonzos? E se eu gritar a plenos pulmões o teu nome chegarás mais perto para me ouvires sussurrar? Irá bater o teu coração ao mesmo compasso descompassado do meu? Mesmo estando tu do outro lado do mundo?

sábado, 16 de fevereiro de 2008

PALAVRAS ESCRITAS

Sossegou-a no embalo das palavras. Ela esperava-as, precisava delas para dobrar a noite e afugentar os pesadelos. Chegavam num embrulho de papel escuro atadas num fio que já dera serventía mais prosaica. Mesmo assim ela passava as mãos, sentía as engelhas que ele fizera no desajeito das dobras e chegava-se mais a ele. Alisada a folha ao plano, atava os cabelos no fio do embrulho, um pendente de lado caído sobre o ombro que lhe permitía afastar da vista tudo o que não fossem as palavras. As primeiras linhas eram lidas de pé, a solenidade do acto impedía-lhe tempos perdidos a buscar assento e só depois, à medida que as frases lhe cavavam nos olhos a paisagem enviada procurava o chão como ligação à terra e para não perder o norte.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

AS ROSAS FAZEM DOER

Assinou a entrega e encostou o ramo ao peito e ao nariz para sentir o aroma, mas do vermelho das rosas nada exalou. Sorriu pelo encanto do gesto, uma surpresa antes do encontro. Procurou um cartão e descobriu na letra feita à pressa um lamento formal mas impossível ir. Pendurou o bouquet pelo braço, as rosas escorrendo o carmim para o chão encerado de fresco à espera de outros passos muito colados aos seus. Arrastou-se até à cadeira e ficou sem força nas costas, uma espinha caída sobre as ancas avançadas que esperavam outras no encaixe das suas. Atirou sem perdão as flores apertadas numa fita rosa muito brilhante e larga para cima da mesa, achou-as logo murchas, as pontas queimadas, um vermelho seco sem sangue que lhe desse alma. Descalçou-se e apertou cada pé de rosa entre os dedos, depois as pétalas arrancando-as dobradas e sem resistência. Sentiu-se faminta daquele amor ausente. Comeu as rosas à dentada enchendo a boca, sobrando-lhe o vermelho a tingir os lábios e nos dedos picados pelos espinhos encontrou alivio para a dor de dentro.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

DIZ-ME, PEÇO-TE

Fico nesta graça depois de me dizeres que me amas... Mesmo que só o digas porque to peço. Sabe-me bem ouvir-te dizer-me essa palavra... Mesmo que o digas sempre no mesmo tom, no mesmo disparo automático de quem mete uma moeda na máquina e lhe sai o brinde. Diz-me que me amas, amo-te. Aninho-me em ti, perdida nos teus braços, de olhos fechados a enganar-me que não to pedi e sonhando que mo disseste porque o sentías tanto, tanto e precisavas de o dizer vezes sem conta para que me lembrasse sempre e tivesse a certeza dessa palavra soletrada aos pedacinhos a encher-me de uma felicidade liquida que me escorre por dentro e me imuniza de outros males. Se não te peço nada me dizes. Nem mesmo o teu olhar me sussurra que o possas sentir e que por pudor da imensidão da palavra a guardas para nós. Diz-me que me amas, talvez à força de o repetires venhas a querer usá-la, saboreá-la no acto voluntário de ma ofereceres sem eu estar à espera, surpreendida pela magia de um verbo tão pequenino me fazer tão grande.
Amo-te digo eu e volto a pedir-te que me repitas no eco enganoso e continuado. Tenho medo de um dia não te pedir por já não precisar e tu quedo, nem notes que já não te amo.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

AGORA É A TUA VEZ

Conta-me uma história, inventa qualquer coisa, quero ouvir-te, desta vez é a tua vez de me encantares nas palavras que me queiras dar, não quero ser eu a oferecer-te sonhos e baladas e princesas e dragões, fala-me de tudo o que me faça sorrir e até molhar os olhos pela candura com que falas nas pausas, no arquear das sobrancelhas, nos gestos das mãos que acompanham o desenrolar da tua voz a pôr pontos de interrogação na boca de quem fala e vive através de ti e também de mim que te bebo. Contas-me uma história, uma só que seja e eu guardo-a mas promete que esta é só para mim para mais ninguém, que nunca a vais repetir a mais ninguém que histórias de encantar são só e isso mesmo, sermos raros nas palavras que recebemos.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

BRANCAS

Encolheu-se perante a imensidão do branco da folha, quase lhe parecía ferir os olhos, afastava-lhe a mão armada, repelía o negro da tinta. Sabía o que escrever mas agora perante a solenidade do acto o inicio parecía um já fim anunciado e as frases desorganizavam-se no contexto e na intenção: o que quería dizer afinal? Entenderíam o que quería transmitir? Mas essa era aflição segunda que da primeira ainda nem se tinha visto um traço, um esboço sequer que corrigido a riscos vincados lhe apagasse a malformação do verbo parido, uma emenda ou retrocesso para uma melhoría do vocal descrito. Amachucou a folha virgem, fez pontaria ao cesto e errou o alvo largo de boca aberta. Dispôs uma nova tão alva quanto a primeira, recolheu-lhe uma pestana caída, curva e negra, uma vírgula sem texto a guarnecer e na prensa dos dedos tomou um lápis e desenhou uns olhos que o fitassem apenas para não se sentir tão só.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

GONE WITH THE WIND

Nunca se perguntara por que chorava, copiosamente, uma torrente de lágrimas a debulhar o nó apertado que se formava no peito e lhe subia sufocado até à garganta. Turvava-se no celulóide como imagens vistas através de vidraças gotejadas e sentía o arrepio das personagens na falta do seu próprio filme. Decorara falas e agarrara o frou-frou das saias longas e armadas, imaginara-se Scarlett a manejar o chicote e arredava o desconsolo do abandono que sofrera. Nessa altura não chorara, não sentira nós nem apertos nem saudades nem a vontade de beijar como agora acontecía com Red, ali no ecrã, plano, liso numa única superficie, mas tão previsivel, tão constantemente sabedora dos seus passos que nenhum sobressalto a atiraría para outra dimensão senão a da sétima arte. Que a do amor tinha-se-lhe escapado como o vento.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

MICRO-VIDA

Desperdiçou-se em coisas pequenas, ligou muito aos detalhes e a concepção da vista ampla rasgada na imensidão da paisagem perdera-se. Quando a quis achar de novo tinha perdido o jeito do alcance no todo, nas manchas de cor, na composição harmoniosa que só a distância oferece e no esforço de reencontrar essa habilidade detinha-se no pormenor, num micro universo recortado destacando retalhos que de per si nenhum valor acrescía ao sentido da vida.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A VIÚVA

Das lágrimas que teve o rio secou, deixou-lhe um vinco cinzento a combinar com o luto e as mãos enganchadas uma na outra, já perdeu as outras, as que se lhe davam na noite branca de segredos e amores eternos e lhe oferecíam coragem nos momentos de medo. Deixou de ter medo, deixou de ter amor, vai tudo a enterrar bem fundo sob a terra castanha e quando lhe pedirem para pôr a açucena pastel há-de sentir nas mãos a força para escavar e salvá-lo, uma vontade negada, tão pouco a flor lhe pode plantar. Puxou o lenço negro aos olhos, não quer que a vejam a sorrir, ouve-lhe o riso ainda fresco a ecoar, um véu leve que a aconchega na memória, segura o terço, desfia os anos contados como vidas, volta a contar, agora por si que a sua também vai no esquife.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

PASSEIA-TE EM MIM

Se hoje formos passear e me deres a mão, o braço balouçado na alegria infantil de ombro a ombro rasgarmos o sol, tu e eu eu e tu, os dois num riso domingueiro, assistir às flores beijadas por um abelha que me faz gritar, não me digas para onde me levas, leva-me só. Se te fizer perguntas não me reveles nada, prossegue caminho, enlaça-me a cintura para eu saber que te confio, afasta-me o cabelo da testa e aponta-me o cheiro da maresia nos lábios que se colam aos meus. Se eu parar puxa por mim, prende-me pelos braços e carrega-me às costas, assobia um trinado, eu finjo que sou pássaro e até voo. E quando chegarmos vou precisar de um abraço, empoleirar-me nos bicos dos pés e segredar-te ao ouvido passeia-te em mim.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

FASES

Esta noite não lhe digam nada que se dobra sobre si mesma, encaracola-se, as pontas tocando o que de extremos foi, míngua na plenitude e mirra na luz, abriga-se no manto azul do veludo nocturno e tira folga. Lá no alto mira a lua, um C ao contrário como o que lhe vai por dentro, um avesso que serve de direito na dor da solidão. Pena que o coração nunca tire folga.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

FECHADURAS

Não sei como o soubeste mas descobriste a combinação para o meu cofre. Devagarinho foste chegando perto, perto, olhaste, sorriste e como um mágico alcançaste o segredo. Não usaste ferramentas nem explosivos, tocaste ao de leve, a ponta dos dedos numa caricia de peso pluma, um roçagar macio que me desarmou as defesas, talvez te tenha facilitado o trabalho, talvez tivesse esperado que alguém aparecesse e me descobrisse cansada de manter este cofre impenetrável. Ou talvez seja tudo mérito teu e na tua arte de achar a chave certa, sem forçar, sem esbeiçar os bordos, uma entrada limpa, um rodar perfeito e o meu coração passou a ser teu.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

FAZER CAMINHO(S)

Nos passos andados há trilhos corridos, saberes encontrados, dores e risos premiados, vontade impedida, vontade vencida, querer mais além, correr e caír, força da alma, andar para a frente e andar para trás, aprender, ensinar, receber e dar, ao pé-coxinho ou com amparo, desbrava caminho ou segue sinais, aventura atalhos e acautela principais e já no final ao olhar a meta, cansado do calo da vida ainda não sabe para onde vai.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

O SOLDADO

Adeus então, vou indo, não digas adeus, é tão, tão, tão verdadeiro? Não, tão definitivo, tão radical, mas é mesmo, que achas, por que te enganas, é mesmo adeus, eu vou, tu ficas, sim, mas um dia quem sabe voltamos a encontrarmo-nos, não te enganes que custa mais, sabes lá tu! O mundo é tão pequeno e depois quando se quer tudo se consegue, tu não queres? Eu quería não ir, quería ficar perto de ti mas lá fora, tu sabes, não vamos falar mais, dá-me só um beijo. Tu volta-me, estás ouvir-me? Inteiro, que te quero inteiro! Não vás! Não podes fugir? Fugíamos os dois, não queres? Tenho de ir, vais dar-me esse último beijo ou não?! Não quero partir sem te levar o gosto, anda, dá-me um beijo de cinema e diz que gostas de mim, gosto de ti soldado, vai com cuidado, vou, abraça-me agora e não te esqueças de acenar o teu lenço.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

PEQUENINA

Tenho frio, aquece-me, abraça-me apertado, esconde-me no teu peito e faz de mim pequenina, não me digas que me amas, diz-me segredos afastando-me o cabelo num mimo infantil, as tuas mãos nas minhas costas como um colo, ouço o bater do teu coração, tão rápido e forte, parece uma musica, um ritmo para eu cantar, mas embala-me tu, sempre junto a ti tão grande, e beijinhos, quero beijinhos na cabeça e nos olhos e na ponta do nariz, cócegas que me fazes, carinhos da alma dizes tu baixinho.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

RAINHAS

Descolou as pestanas postiças, os olhos a brilharem de ardor pelo excesso de maquilhagem, muito fumo, horas poucas de sono, a realidade estampada no reflexo do espelho emoldurado por lâmpadas cruéis que exibem violentas e à medida que se despe, o homem da mulher. O homem da coisa. A coisa de coisa nenhuma. Agora é, agora já não foi. O recorte cinza da barba renasce sob o incómodo de não se ser o que se quer, as lantejoulas perdem o glamour da noite em que por algum tempo se reinventa no parto de si mesmo, tudo chora, tudo murcha, tudo silencía. Nas mãos demasiado grandes esconde o cansaço repetitivo de se voltar a encontrar com quem não quer. Quer música, néons, aplausos, um eterno show que lhe faça esquecer o peso de se vestir numa normalidade demasiado apertada, um sufocar numa pele que pinta e mascara de memórias que sonhou apenas para ter outro passado.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

PÊNDULOS

Atirou o livro para o lado, suspirou, um tédio caldoso pairou pela sala, olhou-a ao redor, tudo sempre no mesmo sitio, tudo parado, o relógio no seu tique-taque certo, acompanhou o vai-vem do pendulo dourado que reflectia às avessas do côncavo a mesa, o naperon, a jarra, as flores de faz-de-conta que são verdadeiras, sempre frescas na sua morte cativa, nunca esperam ser colhidas nem cuidadas, aguardam o pó, o desgostar pela moda para terem o seu único tempo de verdade na rejeição. Achou-se parecida com as flores fingidas, sempre bonita, sempre disposta, sempre enfeitando a casa. Sentiu receio de um dia ser encarada como coisa fora de moda, encostada num canto da vida assistindo-a às avessas no reflexo da monotonia do tempo.