DEC.LEI Nº344/97

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Escrever é poder amar-te



quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

UMA GOTA DE UM MAR MEU

Dou-te palavras, tantas, todas as que eu saiba e se conseguir na arte outras, mais hei-de inventar só para te oferecer histórias. Estas despejei-as nas mãos, cheias, pingam horas e horas de tantas letras que junto e uno e moldo e colo num papel pequenino, que se tu soubesses ainda nem ribeiro sou.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

COGNAC

Pegou na garrafa de cristal, sentiu-a pesada para além do habitual e encheu um cálice, levou-o à boca e engoliu o cognac de uma vez só, os olhos apertados, o ardor lento a descer pelo tubo interior do organismo trémulo. Sentira medo. Uma paralisia no tempo e nas pernas que a agarrou ao chão, cravada na surpresa do sucedido, talvez até uma recusa do real, um apelo ao imaginário para escapar dali rápido, veloz, talvez assim aquilo não aconteça com ela lá dentro, já o sonhou tantas vezes, um pesadelo que vem e a massacra e a atira para um poço que gira e a engole e faz doer. Mais um gole, não ardeu tanto, só sente a lingua dormente, picante, o céu da boca cheio de relevos. Sentira medo. Então aquilo era o medo. Acordada. Sem poços a engolir a sua vontade, mas medo de olhos abertos. Um cálice mais fará o medo dormente e ao quarto achará que foi uma experiência para enfrentar os pesadelos. Sabe bem, nada pica, nada incendeia, relaxa, já não se lembra de como é o medo.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

ESPAÇOS

Olhavam os números verdes, a seta intermitente, só o som alcatifado do engenho a desenvolver-se na evolução da subida. Um pequeno solavanco levou as mãos de ambos a ampararem-se à parede de madeira envernizada. Silêncio. Precipitam-se os dois para o botão cego, o dedo nervoso calcado rápido e curto por várias vezes. Nada. Tentam o alarme, soa um tom choroso, de novo e ainda mais uma. Riem, seguram o nó da gravata não há que perder a compostura, trocam a mala de mão, um frio repentino, um calor abafado, pigarreiam. Mais uma vez o alarme, o botão do número do andar, para que andar vai, eu vou para cima, mais para cima, ah admnistração, pois, pois, eu estou em baixo, logo abaixo, recursos humanos, não financeira, ah, claro. Silêncio. Mais calor, o espelho começou a embaciar-se e o ar está saturado de colónias distintas e óleo de máquinas misturadas com cheiro de queimado. Cheira a queimado não acha, sim já tinha notado, se calhar está a arder algum cabo, acha, provavelmente, não de todo, se isso acontecesse o sistema contra incêndios tería sido accionado, acha, não me parece, não aqui no mecanismo do elevador. Silêncio. Olham-se nos olhos pela primeira vez. Gritam por socorro a plenos pulmões.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

AMAR (É ESCREVER-TE)

Escrevo todos os dias como quem ama, como quem precisa para ser inteiro de amar e dizê-lo e até gritá-lo. De tanto escrever, escrevi-te, amei-te, reiventei-te neste acto egoísta de ter só de si e no acto libertador de amar sem elos, o berro de dentro do amor da carne, o silêncio cantado da alma que se dá. Amo todos os dias como quem escreve, como quem precisa para ser amado de o anotar em todas as coisas pequenas e todas as coisas que de pequenas se tornam enormes no simples gesto de reinventar o amor.

domingo, 27 de janeiro de 2008

MARIA TERESA

Chocaram um no outro, olharam-se desconfiados na expectativa da desculpa mútua. Ele arregalou os olhos e disse Maria Teresa, és tu Maria Teresa e ela acenou com a cabeça perguntado-se quem sería aquele que lhe dizía o nome de forma tão familiar e do rosto nenhum traço lhe acendía a lembrança. Ah, Maria Teresa quanto tempo! Tanto tempo e tu na mesma! Lembras-te de mim, não lembras? Mas Maria Teresa só lhe conhecía o timbre, da calva reluzente e do bigode sal e pimenta, nada, tão pouco das orelhas tão grandes e dos papos gordos à roda dos olhos, sim, claro que me lembro... pois é, velhos tempos Maria Teresa, mas conta-me que tens feito, deves ter um bando de filhos e até netos aposto, eu fiquei solteiro, tu não me quiseste!Maria Teresa sentiu o chão fugir-lhe e a memória chegar-lhe perto como uma chapada, o homem que brilhava oleoso e careca tinha sido a sua grande paixão, o seu grande amor. Sentiu-se tonta, o choque de o rever parecía-lhe tão dorido quanto o dia em que se afastara dele por capricho. E no final também ela ficara sózinha. Pediu-lhe desculpa, há coincidências assim no mundo, no nome de Maria Teresa mas ela não era quem ele pensava, ele devía ter feito alguma confusão, sorriu e afastou-se apressada.

sábado, 26 de janeiro de 2008

EQUIMOSES

Ao proteger a cabeça, os braços fechados sobre o rosto e todo o abdómen curvo como uma concha não se resguardava dos golpes desferidos a pontapé na dignidade. Doía-lhe o que segredavam dela, o chiste de mulher que merece apanhar, a vergonha de se ver roxa e pisada num espelho que não lhe mostrava quem ela era. Depois de uma, duas pancadas já nada faz diferença, fica tudo dormente, fechou os olhos, deixou de resistir, embalou-se na memória de si quando menina e evadiu-se nas saias da mãe. Talvez tenha perdido os sentidos, talvez tenha sonhado ou então foi o grito que vomitou que lhe deu o tom de revolta, a pergunta que martela constante nas costelas, no peito, nas pernas e interroga o sentido de tudo isto, a razão da besta, o merecimento na ponta da faca e numa vontade única deseja, deseja muito nunca ter nascido.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A TRISTEZA

Apelou, esforçou-se por recordar e até chegou a tentar o sorriso, um movimento hercúleo nos músculos mas desenhado surgiu um esgar, uma coisa postiça de quem não acredita no que faz. Era tristeza o que sentía, o que tinha dentro de si a ganhar raízes num terreno que há muito tinha deixado de ser lavrado. A solidão viera primeiro, depois os dias cinzentos e de chuva fria em que todos correm e não ouvem o lamento do pedido de ajuda. Acomodara-se ao silêncio e já quase gostava dele, o som do riso uma memória fina, esgaçada nas agruras do quotidiano. Esquecera o toque de ser feliz e como tudo o que se deixa de praticar votou-o à inexistência, abraçando o que de maior a tinha.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

OVO

Esconde-me dentro de ti. Não quero ver o mundo, nem os homens, nem sentir os gritos e a dor que não sendo minha abre chagas, sangra e magoa. Quero voltar para dentro de ti, protegida nesse casulo de água morna, abafada de choros escorridos na perdição do olhar e das cores e também do sol que se esquece e deixa a noite profunda cegar o coração.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

FECHA A PORTA QUANDO SAÍRES

Com o último grito ele encaminhou-se para a porta de saída decidido. Ela berrou um vai, se queres ir e não voltes mais, e ele deitou a mão à maçaneta rodando-a para escancarar a ira que lhe tomava o peito. Arrependida, não, não vás, fica... ainda não acabei. Ele saíu, deixou a porta aberta, ela correu atrás dele, pendurou-se na sua roupa, encarou-o no olhar fechado, os lábios apertados, encostou a cabeça ao peito dele, esfregou o rosto, o cabelo, chamou-lhe estúpido, puxou-lhe os braços e fê-lo abraçá-la. Olhou-a então, sério, triste, pegou-lhe na mão e trouxe-a de volta para dentro de casa, fechou a porta e disse acabou. Acabou mesmo, sem retorno, sem desculpas, sem emendas, sem gritos ou ameaças. Para quê amaldiçoar o que tivémos neste arrastar de culpas atiradas um ao outro, ambos acabámos há muito tempo. Fica bem, cuida-te e beijou-lhe a testa. Ela entendeu a verdade que negava para si, inventava fios para ligar o que se tinha perdido no tempo. Viu-o afastar-se de novo, quando saíres vê que a porta fique mesmo bem fechada.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

DOLCE FARE NIENTE

Sentou-se, pernas flectidas, passou o protector solar rápido e enérgica, pôs os óculos de sol, esperou que as gotas do mar que lhe brilhavam no corpo moreno evaporassem, distraíu o olhar pelos demais banhistas, seguiu desatenta um jogo de raquetes, contou as ondas, perdeu-se. Deitou-se, cabeça apoiada nas palmas das mãos, covas dos braços expostas ao morno do sol, fechou os olhos, relaxou, deixou-se ir para outra dimensão, os gritos felizes das crianças de quando em vez fazíam-na regressar, escutou o marulhar da água na enchente lenta, enterrou os pés na areia e mexeu os dedos pequeninos sentindo-a passar em fio, uma quase dormência pela fricção. Tirou os óculos, apontou o nariz ao astro-rei e achou egoísta que o sol só a ela lhe pertencía.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

LEMBRA-TE DE MIM

Não preciso que me chores ou por mim sintas a pena leve da saudade, tão pouco na dor me guardes. Leva-me pelo tempo afora, naquele que embraquece os cabelos e vinca o rosto, o que desfila gentes que por nós passam nesta vida e naquelas horas em que todos pensam que dormimos, recorda o som do meu olhar e sorri porque um dia nos cruzámos.

domingo, 20 de janeiro de 2008

MARGINAL

Puxou do cigarro a última baforada até senti-lo aquecer os dedos, depois atirou-o ao rio. Em breve a noite chegaría e a marginal ficaría povoada de carros que a coberto do manto escuro se agitaríam de trocas de amor e beijos fervorosos. Não quería estar ali quando isso acontecesse, não quería sentir mais marcado o ferro da separação, não quería sentir a raiva surda de não ser um desses ocupantes e que os beijos da sua boca não tinha por quem os oferecer. Viu as luzes amarelas do primeiro carro a aproximar-se, vagaroso, ronronando como um gato ao colo. Um homem saíu, cesta à tiracolo, banco desdobrável encaixado no sovaco, canas altas nas mãos. Perguntou-lhe se estava a dar, ele hesitou, o peixe, se estava a picar, não venho pela pescaria, o outro retorquiu que então era um abandonado, um marginal, não, estava só a ver o rio, a ver o rio e a pensar nela não é, calou-se. O homem sentou-se, lançou o fio invisivel à noite do rio, perguntou se quería um café, trazía sempre um termus cheio, não, já estava de partida. Fique, eu prometo que não me calo, tome do meu café e nas próximas horas garanto-lhe que a dor o esquecerá.

sábado, 19 de janeiro de 2008

MULHER À BEIRA DE UM GRITO

Sentiu uma vertigem, o chão a afastar-se, depois tudo muito rápido a rodar, o descontrole nas pernas, os pés amarrados um no outro, a mão a afastar o inevitável e fim: queda. O pescoço parecía ter dado um esticão, uma electricidade por todo o corpo, tremuras muitas, o coração disparado. Levantou-se rápido, talvez ninguém tivesse visto. Uma mulher acercou-se dela e perguntou-lhe se estava bem, estava tudo óptimo, um riso nervoso a disfarçar o susto, veio outra e depois um curioso de mãos atrás das costas, está tudo bem, não foi nada, foi só um susto e agachou-se para apanhar a mala de mão, os objectos espalhados exibindo uma privacidade envergonhada. Arrebanhou-os numa pressa lançando o olhar num raio próximo que lhe garantisse nada esquecer. Sacudiu-se, a roupa preta apegara-se a uma poeira castanha que não saía, as meias finas esburacadas nos joelhos babavam um fio de sangue, o laço do sapato arrancado, doíam-lhe as palmas das mãos, esfoladas, riscadas de uma gravilha miúda que não se vía. Achou-se miserável, solitária, abandonada. Refugiou-se no degrau da entrada de um edificio devoluto, tentando calcar o enfeite do sapato mas este não adería e os buracos nas meias tinham agora aberto estradas largas quando as puxou para cima na tentativa de esconder o inevitável roto. Os joelhos ardíam como bolas de fogo e começou a sentir dificuldade em esticar e flectir as pernas. Sentiu-se febril, tapou o rosto, escondeu as lágrimas como uma criança castigada. Mas o tilintar de algumas cêntimos atirados por um passante para dentro da sua mala de mão aberta a seu lado, deram-lhe de volta a vertigem mas desta feita de um grito de socorro.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

INDIVIDUAL

Encostou-se ao muro, a perna esquerda flectida, o sapato apoiado na sola raspando o musgo despontado num verde húmido das chuvas recentes de Inverno. Puxou as golas ao pescoço e as mãos frias pediram-lhe o forro dos bolsos. Deixou-se ficar a ver os transeuntes martelarem a calçada, eles num passo aberto e firme, elas saltitantes e interrompidas na marcha pelos saltos presos nas pedras branco-negro. Passavam rápido, de cabeça baixa, o olhar apontando um chão já conhecido de cor. Evitavam-no, fazíam de conta que ele nem existía. Achou-se no caminho deles a fazer o mesmo, a saltar este pedaço de pessoa que lhes atravancava a solidão da marcha e agora que se encontrava noutro plano achava-se egoísta e mesquinho. Passou uma mulher com uma criança pela mão, puxou-a mais a si, protegeu-a da proximidade do estranho com o pé apoiado no muro. Teve vontade de chamar a mulher e a criança e dizer-lhes que não era um criminoso, tinha casa e familia, filhos também e não se lembrava de ter tido tal gesto sequer perante um pedinte. Mas arrepiou o chamamento porque a lembrança o traíu e a mão no bolso repetiu o gesto da mulher quando dias antes fizera o mesmo. Olhou o relógio, ela chegou, beijaram-se, deram as mãos e seguiram caminho contando do dia um do outro. Adiante um sem-abrigo dormía num cartão sujo. Ele puxou-a e mudaram de passeio.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

VIRTUA(DE)LIDADES

Bebía as palavras, engolía-as sem mastigar, tudo numa assentada apressada à procura de si, um verbo que lhe traísse o nome, a dedicatória. Consumía o texto expectante do amor declarado, a dúvida iluminada pelo quero-te, amo-te, desejo-te. Voltava ao inicio, demorava os olhos nas frases terminadas a reticências, a vontade de encontrar-se ali exibida como objecto do amor suspirado e no entanto... interrogava-se, enciumava-se no pensar a outras alcançado, quería-se única e cobiçada, imaginava-se nos braços vigorosos de tal paixão. E ao desligar o computador desligava esse fogo ardente, esse amor virtual em que a maior virtude é sentir de quem não se conhece.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

À TUA ESPERA

Algumas vezes ali fora. Reparara nela logo na primeira vez, o ar retro dava-lhe charme, a boca vermelha a destacar-se no emoldurado do lenço de seda que lhe cobría o cabelo e se envolvía no pescoço alto. Acompanhava-se de um livro, talvez fosse sempre o mesmo, não tinha a certeza. Entre sopros na chávena do café ía deitando o canto do olho e fazía-se perguntas, muitas sem saber da sua razão ou apenas a curiosidade aguçada de ver uma mulher diferente das habituais. Numa dessas idas o empregado sorriu-lhe e baixo desvendou-lhe sobre a nossa diva, já faz parte da casa, é bonita não é, ele não sabía bem se era, era misteriosa, há quem diga que espera por um homem que nunca apareceu, se calhar é boato, são histórias do povo que eu nunca a vi com ninguém e a verdade é que uma mulher assim não deve ser sózinha, não acha? Ele não achava nada, continuava a perguntar-se se ela sería mesmo bonita pois não o sabía ao certo e no entanto aquela atracção de lhe saber mais, desvendar-lhe todo o cabelo sempre tapado, o pescoço esguio, comprido mas como ter a certeza se se escondía nas voltas apertadas do lenço de seda? Acercou-se dela, perguntou se lhe podía oferecer um café, ela fechou o livro e pousou-o de lado sem ruído, desapertou o lenço de seda e libertou as ondas do cabelo que tombaram sobre os ombros. Depois olhou-o, a boca vermelha arqueou-se num leve sorriso e respondeu-lhe claro, estava apenas à tua espera.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

À MODA ANTIGA

Podes troçar, rir mas eu ainda sou à moda antiga. Gosto de me sentir frágil, que me faças frágil no gesto atencioso de me abrires a porta, puxar a cadeira, dizeres com licença e obrigado, perguntares se é do meu agrado. Gosto do flirt elogioso na cor que trago vestida ou do penteado que te recorda quando nos conhecemos, eu tão menina tu homem de barba feita, já então preocupado na aspereza do teu rosto no meu e na minha boca. Ri, vá lá podes rir mas sei bem que te comoves tanto quanto eu nos meus olhos brilhantes quando apareces de rosa na mão, mal escondida nas costas, tudo sem surpresa mas eu que te adoro finjo que não a sei, rubra, tão carmim quanto o meu coração. E muitas mais vezes hei-de eu rir, no teu embaraço, quando publicamente te digo clara e sonora, amo-te.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

AS CORES

Pinta-me a paixão de mil cores, renego o vermelho como tom singular, quero-a completa e diversificada desde o branco da descoberta até ao laranja de te saber igual a mim numa alegria sentida plena a dois. Arranja-me verde e azul, para quando olharmos o mar e o céu e acharmos tontos que o mundo é apenas isto, um tecto e um chão, no violeta rasga uma trovoada para que eu grite de susto no trovão que me acolhe junto ao teu peito mas a seguir, peço-te, dá-me amarelo, um amarelo vivo de trinado tão semelhante às tuas gargalhadas e eu rosa pálido, envergonhada da tua troça... Castanho terra para quando caminharmos os dois no silêncio. Na flor que me ofereces aceito rendida o vermelho, mas quero-o profundo, denso, escurecido até ao negro que o que depois vem é para mais ninguém saber.

domingo, 13 de janeiro de 2008

FANTASIAS

Toma-me as mãos, olha-me profundamente os olhos até obrigares os meus a baixarem, pedindo-me de seguida que te encare e sinta o hálito das tuas palavras contra o bater apressado do meu coração, ansioso e receado pelo que adivinho, mas nada digas. Aproxima-te tanto de mim, mas sem me beijares, só quero sentir o calor da tua pele a ruborizar a minha face, aqueles segundos fatais antes da queda esperada, a dos teus braços que me amparam no desfalecimento da emoção de saber que não vou resistir por muito tempo, imploro na boca húmida o beijo que agora , já, imediato quero, todas as estrelas acesas que num flash único me disparam a terra para longe dos pés. Aperta-me contra ti, a mão aberta nas minhas costas a outra perdida no meu pescoço, aconchegada sob o cabelo que te aquece o pulso e as veias e só agora, meu amor, só agora que o sangue que te corre é o meu borbulhando também, diz-me baixo, diz-me manso, diz-me rouco o quanto me queres.

sábado, 12 de janeiro de 2008

TRÍADE

Traçava os braços contra o peito, puxava a camisola, ajeitava a marrafa de cabelo junto à orelha e no nervosismo das lágrimas que raiavam os olhos confessava que ele, afinal, desistira. E soluçava agora, um pranto escondido entre mãos crispadas pela perda de dias entregues ao amor em que se descobrira mulher e mulher se achara para todo o sempre unida a ele. Ele era dela, de uma outra prometido, negócios aprontados em outros tempos, outras familias e um comércio em crescimento que salvara a familia de uma mingua. Explicava que tinha de ser assim, porque era assim e na falta de explicações rematava que o amava calando bocas e condenações. Aguentava a partilha, a duvida e a imaginação dos seus actos repetidos nos braços dele e de uma outra. Chamavam-lhe à razão, pedíam-lhe dignidade e orgulho, um ponto final num assunto sem começo. E ela apenas pedía que a deixassem amá-lo pois tinha sido ele que a ensinara.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

PÃO

Juntei tudo o que era importante para te amar. Laborei de afinco e mangas arregaçadas para que se moldasse num só coração generoso, levedado, a crescer no tempo que nos era devido. Fomos pão, alimento de corpo, saciedade da alma no bem que nos queríamos, verdadeiros como só o pão o sabe ser. Agora que murchou, que as engelhas endurecem como sulcos e tu te foste, raspo o bolor esverdinhado que aparece e ainda o tomo na boca. O amor como o pão tem sempre serventía, tudo se aproveita até mesmo a dor de o tragar requentado.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

SONHAR

Sentou-se e adormeceu profundamente. Ao ritmo das paragens e dos solavancos deixou-se embalar num sonho em que vozes e risos parecíam vir de longe até sumirem e apenas ficar ela e os seus pensamentos. Talvez tenha aberto os olhos e os outros passageiros a tenham observado admirados por um clarão que não veem lhe ter dilatado as pupilas. Mas ela sentiu o azul a cortar-lhe a respiração, o peito acelerado de lhe ter caído em cima um céu sem nuvens. Não sabe onde está, está deitada num tapete verde e orvalhado que lhe pica levemente o corpo nu. Assusta-se pela falta de roupa, sente-se envergonhada pelos outros passageiros do autocarro, cobre os seios com os braços em cruz, falta mãos para tapar o resto. Liberta-se lenta da nudez e regressa ao campo onde o terreno é ela, rola sobre si, os cabelos a embrulharam o pescoço, a boca, sente o nariz na terra húmida, um cheiro bom que apetece comer. Crava as unhas, segura a monte bocados desse castanho virtuoso e enche o olfacto no sorriso de uma felicidade plena. Sem nada mais, sem falta de mais nada. As vozes voltam, um quase grito, sons que apertam o sonho até o estourar como uma bola de sabão. Abre os olhos, desconhece o sitio, as gentes que dormitam mas não estiveram no seu campo verde e de céu azul. Sai espavorida na aflição da paragem perdida, revê-se, vestida corre rua fora passando o sinal vermelho entre apitos de buzinas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

PARA TI

Quando hoje chegares far-te-ei uma festa. Uma festa só para ti, de velas vermelhas escorrendo pingos quentes como sangue manchando a toalha branca muito rendada, muito permissiva na cor que adivinha o fundo dos copos. Não, não haverá champagne, farei com que mordas amargo o quarto de limão e lambas nas costas da mão o sal fino que faço honra em te polvilhar e depois de uma golada só sintas o fogo da tequilla a queimar-te por dentro até no peito te estalar um ardor com que hás-de aquecer o meu, provocador, não demasiado descoberto que estas coisas da luxuria são como Barthes. Adivinha, imagina como por dentro, escondido e tão próximo de ti, serei agora neste isco de te descompôr, o negro do vestido traçado a meio no ondular do sonido que me agita braços de cabelo ao alto, escapando mansa ao sal e ao sumo do limão em que te tentas a provar-me.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

A VER SE ME ARRANJAS UM CORAÇÃO SUPLENTE

Enganaram-me. Disseram-me que o corpo humano era igualzinho a uma máquina, um motor bem afinado que como qualquer engenho apenas precisa de ser bem estimado e o segredo da coisa está na alma do seu dono. É tudo mentira. O meu corpo sente a falta das tuas mãos, de me guiares no escuro até aos teus olhos onde toda eu me ilumino por dentro. E este motor, pobre motor que deixaste de olear, nem ferrugem lhe deste tempo, quebraste-o no extremo ao abandonar a vontade de saberes como funciona. Agora que nem as peças se encaixam mais pela folga que nelas lhe deixaste, a ver se me arranjas um coração sobressalente. Mas quero um de aço com garantia de muitos anos, anti-corrosão, anti-amor, impermeável à temperatura de um qualquer outro corpo e com código de segurança que outras mãos nas minhas são palavras de roubo.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

AUSENTE

Não digas que estás apenas porque que te sentas de meu lado e me dás a mão. Na viagem dos teus olhos pressinto-te noutras paisagens, a mente ocupada em labirintos onde me perco, te grito e tu mais te distancías. Acompanhas-me, compões um par em que apenas somos um mais um, uma parelha de dois separados, um muro de vidro em que nos veem mas não nos conseguimos tocar. Não digas que estás quando não és que ser é pertencer e tu de mim largaste amarras, deixaste-te ir ao sabor de uma corrente que me afoga e me engole nessa aventura em que partes sózinho. Onde estás tu quando no silêncio cúmplice nos deveríamos fundir em metal precioso e apenas me acho adorno partido, vulgarizado em nota de gosto duvidoso quando na simplicidade da pele muito mais me vestirías se tão só da solidão ecoasse a palavra nós.

domingo, 6 de janeiro de 2008

DOCE&AMARGO

Trouxe o bolo: barrocamente decorado no pormenor desenhado à seringa, o creme firme e níveo da nata muito batida a contrastar com o negro do chocolate perfumado a café. Sabía do gosto dele. Sabía que ele gostava de surpresas e o bolo trabalhado na tarde inteira merecía todos os gestos que lhe dedicara. Há um ano que estavam juntos. Não era bem juntos, que ele nem sempre vinha mas o amor que se tinham justificava essa partilha que ela acabara por aceitar no papel da outra. Da mesa posta só tinha olhos para a sua obra. Salivou pelo perfume, pelo adivinhar da noite a chegar, dos abraços e dos beijos com gosto do chocolate, da energia do café a despertar novos sentidos no toque. Tocou o telefone, mensagem, impossível ir. Leu uma e outra vez. Sentou-se à mesa, olhou o bolo e apeteceu-lhe destruí-lo de arremesso. Mas a tristeza tão grande quanto o amor esperado imobilizou-a. Passou o polegar no creme e chupou o dedo longamente, o olhar perdido nas lágrimas amargas que tentava engolir. Repetiu o gesto, o amontoado do chantilly ficou-lhe nos cantos da boca, da decoração nada restava. Atacou o miolo escuro, a mão em garra, encheu-se até não conseguir mastigar, a respiração atafulhada pelo excesso e quando conseguiu engolir aquela massa, levantou-se, apagou as luzes e deitou-se vestida sobre a cama feita. No dia seguinte arrumaría tudo, o resto do bolo para o lixo que o creme decerto havería de ter azedado.

sábado, 5 de janeiro de 2008

O MAR

Mal chegou à beira da rocha sentiu o rosto polvilhado do disparo da onda contra a pedra, uma humidade salgada que lambeu nos lábios e lhe embaciou os óculos. A ventania abanava-lhe as calças como bandeiras e abría-lhe o casaco descobrindo o peito ao frio. Não sentiu mais frio do que o que já trazía dentro de si. O estrondo da vaga a abater-se ruidosamente encheu-lhe a cabeça de novos sons, esmorecendo as vozes que o atormentava, dificultando-lhe a sintonia da sua vontade e esta, havía-a perdido há muito, lá para o desterro das perdas de quem amara e o deixara na solidão de se manter errante dentro de si. Procurara o seu rumo mas nada valía a pena, já nada havía aqui para si, talvez o melhor fosse procurar outro caminho em busca dos que se lhe foram. Decidira. Não era uma idéia remoída e adiada, era uma vontade, um querer de já não estar. Contou as ondas mas perdeu-se, baralhou-se entre a quinta e a sexta que lhe pareceu uma só, aguardou pela acalmia a descobrir a areia mas só viu um verde, muito vivo, muito fresco, das algas coladas à rocha. Lembrou o Verão passado e como essas pedras parecíam estar cobertas de coisa velha, castanha e seca, sem vida, naquele tempo nuas de água. Vieram de novo as ondas mas envolvera-se naquelas vidas que parecíam mortas e agora tão jovens e voltou a não contar as ondas. Limpou os óculos, arrepiou-se, abotoou o casaco e decidiu que voltaría a ver o mar quando o Estio de novo o aquecesse.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

DE CETIM

Se eu me levantar durante a noite, não estranhes. Vou apenas espreitar o negrume do céu, tentar descobrir-lhe uma ou outra estrela acesa que faça brilhar este cetim de azul tão profundo que magoa os olhos. Não troco o calor da tua respiração pelo arrepio do silêncio que envolve este lado do mundo. Apenas quero sentir que me chamas, que me precisas na entrega ciumenta de quem teme pelo fascinio do escuro mágico aqui e ali pontilhado por faróis que me encaminham o suspiro, vê-los traçar uma estrada de pedidos à próxima cadente suicida que não receba o seu amante. Mal sinta este xaile fino a escorregar-me a pele voltarei para ti, cheia duma saudade que nunca tive pois tu és o meu melhor abafo.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

DE QUE ÉS TU FEITO?

De que és tu feito que tanta tristeza perpassa a roupa, o peito e desbota no teu rosto os olhos húmidos de uma esperança que parece nunca te ter tocado, as mãos no gesto pendente de quem perde a força do aperto dos abraços encolhidos na timidez de desejar, uma fraqueza contínua de lutas por eximir, a boca fechada sem dizer ai, sem atirar o berro da raiva e ainda o da paixão mais o punho cerrado na vontade? Envergonhas nesse corpo todas as emoções, todos os fluidos que constroem o homem e um dia, tarde, tão pouco saberás a que sabe a dor.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

À ESPERA

Primeiro umas gotas, umas pequeninas bolhinhas transparentes que se colaram ao vidro da janela. Ela encostada ao cortinado branco de gaze admirava a chuva, tão fina, tão constante. Logo de seguida veio o vento, entortou a água que caía, arremessou-a forte contra tudo, a janela manchou-se de água e distorceu as imagens para o lado de fora, ela já só vía manchas nas copas das árvores, borrões escuros nos chapéus de chuva abertos que se deslocavam rápidos como peças de um jogo de damas. Envolveu-se no cortinado, tapou o rosto, girou sobre si vestida no longo da gaze branca, pensou Primavera e imitou no som picado da chuva o som dos ribeiros serpenteando entre seixos e margens curvilíneas, a Primavera havería de chegar outra vez e fechava os olhos, embrulhando-se naquele casulo improvisado de hibernação. Pena que o pensamento não adormeça também ou se vá, como as águas da chuva que batem na vidraça e escorrem, mortas até ao chão, até empaparem tudo o que debaixo deste tapete de terra se envolve num cortinado de gaze branca.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

O BRINDE

Pediu-lhe desculpa, atabalhoadamente procurou como limpá-la, corou ao sentir que lhe tocara os seios no jeito inocente de se redimir do desastrado momento de euforia em que recuara de copo erguido e gargalhando esquecera o seu redor, embatendo nela e vertendo o liquido pelo vestido que a envolvía. Ela balbuciava sem completar frase alguma, ele numa constante falação de mil perdões ía olhando aquela mulher de rosto sereno, os braços elevados numa curva doce como que a envolverem um espaço a si mesma que aconchegava como uma capa. Calou-se, olhou a mancha escurecida do tecido a morrer de grande no peito em pequenas gotas pelas pregas do vestido que a cobría até ao chão e perguntou-se onde tería a noite escondido aquela mulher que não dera conta dela. Reparou no seu olhar, quase triste, quase ausente apenas iluminado pelo gancho em forma de cisne que lhe segurava uma madeixa de cabelo. Quis oferecer-lhe uma taça de champagne, um pequeno nada pelo estrago que fizera e ao mesmo tempo um pouco mais de proximidade que lhe trouxesse mais descoberta. Ela recusou, ele insistiu e arrojou um brinde ao ano que acabara de entrar. Ela repetiu não e sublinhou-o com um aceno delicado da palma da mão rosada. Sem dar tempo ao pensamento ele tomou-lhe a mão e beijou-lhe aflorado os nós dos dedos. Ela desprendeu-se embaraçada, um outro homem chegou, ajeitou-lhe a cadeira. Ele voltou à sua mesa e durante todo o resto de noite brindou ao pequeno incidente que lhe iluminara as primeiras horas do novo ano.