DEC.LEI Nº344/97

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Escrever é poder amar-te



segunda-feira, 31 de março de 2008

GESTOS&PALAVRAS

Falou. Em silêncio. Apontou os indicadores ao canto dos olhos e repuxou oriental, notou as rugas fininhas a desapareceram na extensão da pele e mirou de um lado e outro. Falou. Em silêncio. Afunilou a boca num coraçãozinho desbotado apontando no queixo saído o disfarce dos vincos no pescoço ainda alto. Depois deitou a lingua de fora, observou-a e aos dentes e à campainha, fez ah longamente e engasgou-se. Suspirou. Em silêncio o espelho devolveu-lhe a imagem do que era. Gritou-lhe, tentou assustá-la na esperança daquele reflexo de rugas e ridulas e vincos e pregas e pequeninos papinhos se arredarem pela força do som. Nada falou. Silêncio. Os olhos envidraçaram-se. Ele chegou, abraçou-a pela cintura e de queixo apoiado no ombro dela, mirando-se aos dois nas cãs disse-lhe que ela era linda. Não falou. Sorriu.

domingo, 30 de março de 2008

ESCALADA

A medo, devagar, num crescendo, a fome controlada, já se perderam mãos e braços e até o coração latejante, agora vai de seguida o olhar que ninguém precisa de ver o caminho do que se quer e o relevo da pele arrepiada é guia bastante para seguir até ao topo e ficar por lá embrulhado nos cabelos e nos cheiros e na água da boca que quase se adivinha mas surpreende por ser tão esperada e tão bela, rastilhos nas curvas e covas quentes que mais quente se tornam nas dedadas calcadas e apertadas da tomada de cada bocado vencido, nada sacia, tudo aumenta na velocidade lenta do mundo a parar para deixar que os amantes se juntem.

sábado, 29 de março de 2008

O CANTOR

Nessa noite levantou todos, o palco pareceu-lhe maior, as luzes mais bonitas , os veludos das cortinas mais ricos. Nessa noite o seu fato perdeu o esgaçado de shows sem fim em que as palmas não acordaram os que dormíam, encheu-se de acetinado nas bandas e pediram encores de olhos marejados na emoção da voz que se prolongou para além dos acordes finais da banda e até no fosso a batuta suspendeu-se da ordem paralizada no timbre claro que ecoou sala dentro e voltou e rodeou como uma capa de mágico. Nessa noite soube onde pôr as mãos e o micofone não apitou o guincho supersticioso de mais uma fraude. Nessa noite despediu-se do palco e do animal que por lá deixou, à solta, recolhendo os bocados de anos que dera. Regressou ao camarim sem roupa de artista. Nessa noite levou o melhor abafo sobre os ombros nas palmas que para sempre lhe farão companhia. Já não se sente só.

sexta-feira, 28 de março de 2008

CRUZADISMO

Descobrira nas palavras cruzadas o escape do que o rodeava, um esconderijo para os olhos que se empatavam nos passageiros que seguíam na sua frente, assim evitava o rosto deste e daquele e ao mesmo tempo exercitava a mente ao invés de a perder nos joelhos macios da mulher que se sentava adiante e só de propósito para o perturbar. Desenhava as letras muito vincadamente, passando-lhe várias vezes o traço no mesmo sitio a carregar uma intenção, a certeza do que sabía sem erro. Tinha vezes que as fazía maquinalmente, uma musica de cor entoada nas três, quatro, seis letras, ara, tara, tâmara, medía o tempo do trajecto e a sua habilidade e rapidez sem consulta das soluções, tapava a esferográfica esborratada do acumulo de tinta e guardava apressado o livrinho companheiro marcado na folha completada. Encarcerava-se em cada quadradinho horizontal e isolava a vida nas verticais, caminhos sem saída perante as quadriculas negras.

quinta-feira, 27 de março de 2008

A FOLHA (ESCREVER É PODER AMAR-TE)

Pergunto-me se dormes e tão quieta ficas na mutez pálida que quase me envergonho de te espicaçar no fio condutor da tinta à minha veia, azuis que se casam, fluiem e animas-te, empolgas-me, extravazo no desenho de pontos e bolinhas, espaços em suspenso para que possas respirar e sempre disposta deixas que te tome e dilacere na alvura segredos inconfessáveis de como escrever é poder amar-te.

quarta-feira, 26 de março de 2008

SE

Tanto grito e mãos cerradas, negações e ameaças, acusações, dedos apontados e costas voltadas, peitos fechados nos braços traçados em cruz, uma pena a cumprir, revoltas e bandeiras brancas, motim de porta fechada, fotografias compostas a sorriso sepia, lá atrás ficou o que de si conheceram e não encontram mais, perderam num dia qualquer a aposta que fizeram e o que foi a jogo é agora fora de jogo, abominam o que sentiram na saudade do que queríam ter sido e perderam numa memória escura as palavras na confissão adiada do arrependimento.

terça-feira, 25 de março de 2008

ÉDEN

Por cada dia passado um tracinho em diagonal por cima do número do dia. Menos um, mais próximo dele, no fim-de-semana vão ao jardim, com sorte não chove, ouvem os metais no coreto e ele gentil oferece-lhe um sonho branco como uma nuvem na bola gigante de algodão doce, há-de roubar-lhe farripas só para lhas dar à boca e besuntar-lhe os lábios e o queixo e hão-de rir muito no braço dado tão bem comportado de um passeio publico, disfarçando à volta de árvores e folhagens olhadas de baixo o roçar da cintura fina pela mão aconchegada, colhe uma margarida junto ao aviso de proibido e profere frases feitas de flores para uma flor como um original que ela guardará para todo o sempre. Por cada segundo passado uma argolinha perfeita aprisionando tudo até ao próximo fim-de-semana.

segunda-feira, 24 de março de 2008

A PAPOILA

Apressou o passo, o salto entalado deixou o sapato na rectaguarda e cortou-lhe o ritmo já atrasado, praquejou, calçou-se arrastada até acomodar os pés à velocidade quase corrida, passinhos curtos na saia travada, amaldiçoou-se nos cinco minutos a mais na cama e no tempo que lhe fugía mais rápido do que o que precisava para entrar a horas. Viu o autocarro partir sem ela na troça de quase o alcançar, tombaram-lhe os ombros, a melena e a pose, duvidou no caminho de regresso a casa e esquecer o mau inicio. Prosseguiu o passo, abrandou, o cansaço na barriga das pernas trouxe-lhe a dormência da falta do pequeno-almoço, o olhar rente ao chão embaciou-lhe os óculos de sol e sentiu vontade de desaparecer. Depois, chorar. Por fim estacou-se, perguntou-se porque corría, porque se zangava consigo, com o mundo. Encheu o peito de ar e apeteceu-lhe dar um grito que lhe abrisse o peito. Reparou então, que no meio de um canteiro muito verde e aparado uma papoila solitária berrava o vermelho igual ao seu.

domingo, 23 de março de 2008

AMENDOAS

Gostava de todas. Das coloridas a pastel vía os tons de infante mas arrojava a aspereza nas torradas de tom sangrento, a lingua a puxar os grânulos areosos para logo de seguida se consolar nas reboludas licorosas enfeitadas no aparo tingido da mão de arte em quadros liliputianos ovalados. Lisas e espalmadas, brilhantes e enceradas trincava-lhes o verniz ora branco ora negro na pasta mole encostada ao céu da boca numa oração de olhos semi-cerrados ao confiteiro artesão que convertía o chocolate. Mas era no enjoo de tanto pecado que se punía nas verdes e aciduladas, água de saliva que a confessava. No final acabava a brincar com as de casca, a sentir-lhes sob a palma o veio que fecha o miolo, os furinhos que deixam respirar o coração que nelas se encerra como um esquife, libertava daquele aperto na gula de só mais uma, e enfartada nem ligava às origens do festim, a verdadeira e tão simples amendoa.

sábado, 22 de março de 2008

TANGO CARMIM

Já pus o meu vestido vermelho decotado e muito justo e nos pés os sapatos que sabem dançar, espero a tua rosa branca para enfeitar o meu ombro e o teu braço à minha roda para me cingir, nos lábios levo o brilho dos teus beijos e dos segredos que me hás-de sorrir noite fora encontro jóias que mais nenhuma tem. Ergui nos cabelos ao alto o pescoço que te ajeito no cheiro de te querer e quando o tango atacar seremos perfeitos como a rede das minhas meias que te enleiam nos dedos a vontade de me teres. Nego, nego só e apenas para que me peças e me puxes e até me arrastes na liga negra até ao escuro do salão onde brilham os teus olhos, rodopio, volteio, rondo-te em passo riscado o desafio e até a noite tombar o pano a rosa que era branca abrirá em carmim.

sexta-feira, 21 de março de 2008

NINAR

Canta para mim baixinho, docemente, afaga o caracol de cabelo por detrás da curva da orelha, passeia o teu dedo no meu nariz, na sobrancelha, alisa os vincos que me dão idades na testa muito preocupada de tanta coisa feia, olha a veia a latejar no caminho do pescoço, moras aí sabías, por isso te peço a ti, dá-me ninar, dá-me consolo, dá-me mimo, dá-me pequenino, torna-me grande nos teus braços de mundo inteiro, baloiça a minha nau no teu mar calmo e leva-me para além destes olhos que fecho.

quinta-feira, 20 de março de 2008

SONHOS DE AMOR

De tudo o que teve sempre foi pouco ou até mesmo nada que o que quis foi-lhe atirado aos bocados como se alimenta a fera na jaula. E ainda assim, aceitou-os, comeu tudo para não morrer na faminta interrogação da duvida de saber se sería aquele pedaço o do amor, se o rejeitasse por ter muito osso talvez nunca viesse a saber o gosto da saudade e do desejo. Tragou de pequenino e em largas dentadas, aproveitou sucos e nutrientes, nunca se fartou ou caiu no enjoo, sempre mais nem sempre o melhor, mas o sonho do grande, aquele, o especial, não traz rótulo, acabou a experimentar de tudo até sujar os beiços e num dia ainda com o brilho na busca do que a enchesse como iguaría deixou de limpar a boca às costas da mão, sorriu e teve a certeza que na próxima vida sería melhor.
(a Regina)

quarta-feira, 19 de março de 2008

SORRISOS EMPRESTADOS

Li-te por aí algures, no meio de neves e brancuras de sonhos, recordações tiradas a meio de sobressaltos na noite, faces que sempre foram tuas e eu nunca vi, até cheiros e pensamentos, coisas que se volatilizam para os outros, sorri, na tua distância e cumplicidade sorri, pateticamente como os simples que se agradam pelo paladar doce de matar saudades.

(a Iria)

terça-feira, 18 de março de 2008

O MEALHEIRO

Sacudiu, agitou, o som metálico lá dentro a chocalhar nas outras moedas, tontas de tanto movimento, algumas a saírem como linguas de fora, a lata amassada, o vermelho da cabine telefónica estalado pelos anos, ferrugem, muita, tanta, a pegar-se às mãos e à roupa, ainda algumas teimosas que se escondem pelos cantos e não sabem o caminho da ranhura. Agora é grande, aprendeu truques, sabe como esventrar o interior de segredos, enfia uma faca e apara no jeito a saída deslizante do circulo sonante que desce pela rampa improvisada, ilumina o olhar, passa a linguínha brilhante na satisfação dos lábios, abana, ainda soa qualquer coisa, perdeu-se o metálico, um som quente que não fere a velha lata do mealheiro, espreita, afila o olho à ranhura fina que nada lhe diz, sacode, vai de faca e preso no estilete aperta um cartão amarelecido que puxa ágil no dedos. Desembrulha, desdobra, desfaz os vincos de anos nos quadrados bem marcados do papel. Um caracol de cabelo louro empobrece o tom das moedas.

segunda-feira, 17 de março de 2008

DESTINO

De mim talvez um dia alguém se lembre de descobrir no meio de tantas linhas emaranhadas pelo passar dos anos a tricotá-las em cadernos e sebentas, em papéis de embrulho a flores da estação, em cantos de jornais picotados no folhear ou até mesmo no bilhete simples de uma viagem de eléctrico, pequenos pedaços do que fui e os junte como cartas separadas dos seus envelopes, adivinhando o envio e a morada.

domingo, 16 de março de 2008

SIMPLES

De todas as coisas que desejara todas atingira, umas de menor custo outras dadas, outras de peleja e com sabor condimentado. Do que quería agora já tudo fizera: cartas, sorrisos, flores e chocolates. Por isso não entendía que ela não lhe devolvesse mais que um obrigado, mas não posso aceitar, e ele murcho como o ramo pendurado, magicava que mulher era aquela que rejeitava o que outras gulosamente lhe cobiçavam nas mãos. Inventou-se de outro, soprou-lhe poemas ridiculos que pingavam saudades e ela nada, apenas o olhou e tombou a cabeça à procura do verdadeiro, quem és tu, perguntou. Desanimado, achou-se pobre, um conquistador barato que à força de ganhos nunca soubera o que de verdadeiro valor tivera atingido, tesouros sem brilho. Agarrou-lhe as mãos e confessado nos olhos baixos pediu-lhe que ela o ensinasse. Ela apontou-lhe o sol e o mar, conta-me uma história sem heróis.

sábado, 15 de março de 2008

TÃO CEDO, TÃO CEDO

É cedo, tão cedo para acordares e partires. Cedo demais para o que tivémos, para o que ainda podemos viver, para todos os gritos e risos e silêncios, e as mãos dadas e até as costas voltadas, que de todos esses tempos vem a harmonia dos ritmos, o compasso certo de dois. É cedo, tão cedo para baixares os braços e desistir da luta que mal ainda se percebe o troar dos canhões ou se avista a bandeira branca. É cedo demais para fazeres do romper uma noite às avessas, que da madrugada se encontra o meio caminho entre o dia e a escuridão. É cedo mas tão cedo e tão breve este estar que quase sinto que tarda o teu chegar.

sexta-feira, 14 de março de 2008

CANTATA

Gosto de te seduzir na moleza do caminhar trepado dedo a dedo até atingir no mento o rasgo de polpa doce e húmida que apanho como se fosse minha e de manjar tomar tudo na gula nunca satisfeita de quem quer tudo, sempre tudo e mais e melhor, mais apurada esta pimenta que te salpico no meu olhar, desejo do fogo da ardência, do radioso de te saber domado quando pensas que me domaste.

quinta-feira, 13 de março de 2008

EXPLOSÃO DE TI

O que dela era pegada envasada reconstruiu-se da matéria dele: quanto mais ele a beijava mais ela sorvía daquele sémen, uma dor quase rasgada no nascimento parido dele. Completou-se na integra quando a palma lhe pousou no mecanismo traiçoeiro que bombeava para as veias sentindo ali a um toque a explosão eminente. Viu-o à sua frente desfalecer em lama, deixou-o mesmo abismar-se em si mesmo e quando já só restava um contorno e cacos de um vaso de transplante deixou-se caír sobre a terra, cobriu-se com as bátegas de água e copulou-o. Ai voltaram a ser dois, cada um renascido no outro. Gemeram as raízes na pele, olharam-se e deram as mãos.

quarta-feira, 12 de março de 2008

MIMETIZAR

Um raio. Outro amarelo na noite parda. Hoje não há azul. Só uma fome violácea que fareja a trovoada, aguarda a água que há-de tombar em bátegas pesadas como cabrestos sobre o pescoço, aliviando-a do jugo do dia, vestindo-a da melhor forma, modelada, molhada, escorregadía como um cetim frio que se aconchega à intimidade. Mais um raio como arame farpado. Rasgou-lhe a porta de saída, o nariz adiantado ao cheiro de pólvora seca afrodisiaca-lhe no palato o gosto da terra que há-de pingada empapar as suas pegadas e nenhum rasto lhe poderão seguir. Nos primeiros chius da água o tambor do trovão. Já nada ouve, solta, corrida no relento liquido propaga-se a imagem como uma fotografia premida no dedo contínuo, onde começou termina como um eco, uma pedrada num lago ressaltada na habilidade do atirador. Novo raio. Encontrou-se. Desaparecida para os outros. Jaz numa poça. Ainda um último risco no negrume que tombou repentino e inquieto, um brilho de olhos num mancha espelhada.

terça-feira, 11 de março de 2008

ENGANOS

Não quero, já sei como é e não quero voltar a sentir -me tonta, doente de tanto doer por dentro e gostar dessa dor quente que abrasa no peito e no céu da boca desejos insolúveis que me tiram o chão e o tino cuspindo-me reduzida num olhar todo apertado, fazer de dois um, fazer de mim o outro ou o outro em mim e baralhar-me no diluír de quem é quem e só existir por ser outra, renovada na paixão enaltecida do dar, dar e sempre mais e sempre dar-se num avesso perfeito até sentir que o mundo é um fruto que se come na saciedade de amar e rir mais e muito e especial é-se na condição silenciada da entrega. Já sei como é, não quero que doa outra vez.

segunda-feira, 10 de março de 2008

PERDI-ME

Acho-te triste, curvado, parece que minguaste, não te vejo o queixo apontado à estrada desempoeirado das incertezas que sujam os outros e a ti nunca te tiraram o ar.
Acho-te tombado, quase caído, vertes a seco as lágrimas que lavaríam essa nódoa que cheiro na tua alma. Que tens tu que te verga o sorriso e envelhece o brilho que sempre me cegou guiando nas estrelas o destino da busca, esse tesouro sem peso e que te cobre como um rei?
Mas quando estendes as mãos e calado nada vês li nelas a tua sina. Esqueceste-te de sonhar.

domingo, 9 de março de 2008

ACTOS

De cada vez que ela por ele se deslizava, apertava os lábios, os olhos, as mãos como se sentisse dor. Caminhava-o, cego, perdido, pedindo o fim breve para logo se atrasar no repente estático que ela obrigava. Impulha-lhe textos sussurados ao ouvido, prendía-lhe a tensão nas palavras murmuradas sem pontos finais, parágrafos completos de outros mundos e ele cativado na narrativa perdía-se para outro rumo. E lá voltava, salgada do mar dele, arranhando-lhe o torso na areia vincada pelos joelhos dela, apertendo-o nas coxas, amazonicamente fantasiada de contra-luz. A indignação dele arremessava-a para trás, o cabelo molhado chicoteando a pressa da meta. Domava-a então, o sabor do sangue no lábio queimado de lhe ser dele.

sábado, 8 de março de 2008

O LUME DO OLHAR

E veio o vento guardá-los na areia serpenteada de olhares famintos de lhes serem iguais.
Que já muita cópia havíam tentado mas no ensaio de fogo do olhar falhara o mais simples: amarem-se.
É preciso que os olhos se amem, se forniquem até à lágrima para que se sinta na pele fundida da cobra todos os anéis da alma. Sem esse lampejo, dessa acendalha resta apenas o humano.

sexta-feira, 7 de março de 2008

LEMBRAR

Por todo o dia se sentira triste, um pesar na alma e nos ombros, a face curvada sobre o coração a espreitar se ele estaría mesmo lá, se ainda batía. Uma melancolia vestiu-a. Sentiu saudades, não soube de quê, de quem, tentou chorar no alivio dessa carga que lhe pesava mas não encontrou motivo nem alento para expurgar o que a incomodava e tão pouco lhe sabía a razão. Parecía esperar pelo que desconhecía, talvez um raio de sol talvez a purificação da chuva. Mas quando as mãos na caixa do correio tocaram o postal ilustrado de uma cidade de mil cores os olhos sorriram, olá, estou a pensar em ti neste momento em que te escrevo.

quinta-feira, 6 de março de 2008

AS MÃOS, OS OLHOS, A BOCA

Primeiro que tudo amor, as mãos. As mãos apertadas nas minhas, a polpa dos teus dedos a sentir as costas das minhas mãos que estas se aquecem no miolo das tuas. Depois o olhar, parado no teu até sentir arder por dentro e no sal que esta água de te querer pode parecer brilhar como uma lágrima mas não o é. É sentir-te anunciado. E na boca amor, na boca que quero que demores a chegar à minha para que quando a tingires de beijos nos toque a nós, por dentro, na garganta, que este nó que engulo é apenas amor, amor.

quarta-feira, 5 de março de 2008

COMO UM CONTRATO

Dividíam cama, mesa e salário. Espaços também. Dividíam diálogos não interrompendo o outro e tão pouco discordando. Davam beijos no rosto pela manhã e à despedida da noite. Aceitavam a gordura e a calvicie. Mas nunca revelaram que tinham sonhos e ânsias e vontades e desejos e gostos e desgostos. Quem os visse chamavam-lhe o casal perfeito.

terça-feira, 4 de março de 2008

A PRIMAVERA HÁ-DE CHEGAR

Que saudades, anda abraça-me, dá-me aquele gosto de te sentir tão perto de mim que quase sinto o teu coração a empurrar o meu, tenho frio, aquece-me, aperta-me, esconde-me dentro do teu casaco e leva-me contigo, promete que a Primavera ainda há-de chegar, mesmo que chova e eu ainda não tenha visto uma andorinha sequer a anunciar-me o tempo novo, mesmo que a Primavera seja só uma estação que ficou perdida lá para trás nos tempos da minha infância e tu me fales dela como uma história que inventaste para me distraír das saudades que te tenho. Conta-me de flores e árvores e pássaros e fruta que chega, sumo que me agua na memória de os não ver há tempo tempo, quase tanto tempo como aquele em que te esperei.

segunda-feira, 3 de março de 2008

A ORDEM DO CAOS

Há sempre um sentido em todas as coisas que acontecem na vida. Mesmo que não os aceitemos por não os entender. Até os que nos magoam, ferem e ainda os que nos violentam. Andamos no sentido de uma bola que gira e nós dentro dessa esfera, umas vezes de pé outras de pino, de olhos abertos para não entontecer ou cerrados com muita força porque o estomago se embrulha. Queremos à força repudiar o que nos acerta no aleijão mas a inevitabilidade do arremesso acaba por deixar cicatriz e só muitos anos depois entendemos a glória desse momento ou a pequenez da nossa dor perante a dos outros. Agarramos a mãos cheias o que achamos ser a felicidade plena e perpétua e no entanto, que falibilidade essa ténue coisa invisivel que num sopro ou num desacerto de opinião se esfuma como se nunca estivesse estado presente.

domingo, 2 de março de 2008

O AMOLADOR

Ouço-o lá fora. Mas não ouço a chuva ou os pingos no varandim a estalarem naquele som de metal que faz música. Agora deu-me um frio repentino, uma sensação de noite que me encolhe entre cobertas e roçar a face no algodão macio da almofada é tão mais confortável que estar lá fora. Daqui a pouco vai chover que já ouvi o amolador e embora não lhe chame os serviços ou vá a correr à janela vê-lo passar, sei-o de lado amparado na bicicleta ferrugenta, mãos no guiador, de quando em vez leva o apito espalmado aos beiços e sopra longo e depois rápido. Cheira-me a desgraça sei lá porquê, a tragédia que não conseguirei evitar se não me levantar depressa desta cama e o enxotar para longe da minha varanda e das minhas janelas, receio que as begónias murchem naquele sonoro prenúncio de fatalidade. Calou-se. Já chove? Onde será que rola o amolador, sem cama onde se abrigar nem varandas nem janelas com begónias vermelhas onde possa espreitar fregueses que o chamam de tesouras e facas, um golpe só e queda-se o apito longo e rápido do amolador. Ouço uma moeda que caiu ao chão. Aconchego-me. O amolador há-de voltar, triste, assobiado como um vento numa casa abandonada. Por agora chove, ouço o varandim a chamar a chuva, os pedais da bicicleta partem rápido, adeus amolador.

sábado, 1 de março de 2008

NO ESCURO

Não era só ela que respirava aquele nocturno, também os móveis estalavam o suspiro fundo que só é permitido quando o escuro avança no privado da intimidade e os demais objectos ganham vida movendo-se lentos e agigantados na pretensão de saber se tudo dorme. Ela não dorme, abre muito os olhos e ouve o coração a bater forte, talvez desperte paredes e estas deixem de escorrer as horas amareladas quando o sono não chega e se cavalga no pensamento veloz em caminhos tão diferentes como a saudade e a lembrança ou a voz de alguém amigo e a lonjura ou ainda nos amores que já passaram e o gosto dos seus beijos. Encolhe-se na roupa até ao queixo, esconde-se do que não vê, o frio subito que se acomoda no pescoço e na barriga é o medo de não perceber o que a rodeia, monstros que a espreitam se desatenta adormece no cansaço. Talvez se esticar a mão atenda a esta capa azul fundo que paira sobre o quarto mas sabe-se lá o que a aguarda por baixo da cama, aninhado e expectante, num pulo caça-a e sem força para resistir deixar-se-á levar para todo o sempre para o escuro. Adormece.