DEC.LEI Nº344/97

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Escrever é poder amar-te



quarta-feira, 30 de abril de 2008

NO MUNDO DAS NUVENS

Em todas as pessoas há uma nuvem. Cheia, macia com cheiro de açúcar e vagem de baunilha. Uma para cada um, uma por todos os sonhos sejam os de menino, os de apaixonada ou do avô que se move na bengala. As nuvens são sacos de sonhos que vamos enchendo ao longo da vida, arrumando lá para o fundo mais junto ao céu os que realizámos. As nuvens não se gastam nem se esgotam quando subimos a montanha e mais perto delas sopramos os segredos arrumando-os juntinho dos sonhos. Choram, chovem, molham-nos para nos fazer lembrar que estão lá à espera de serem puxados por um fio invisivel que nos prende a um mundo cheiroso de coisas de encantar. Esse fio nunca se perde e no final quando se toca o azul trepamos por ele e voltamos a sonhar.

terça-feira, 29 de abril de 2008

DISTÂNCIA(S)

Podes dizer por favor, obrigado, até minha querida e chamar-me amor que das mãos e dos olhos leio a distãncia do som ao coração, juntas palavras, juntas tudo num saco sem fundo em que vasculhas ao calhas o atributo pendurado das etiquetas decoradas, colas uma e outra, depois recolhes tudo na mira do próximo uso e eu só quería que calasses o ruído cada vez maior desta fatalidade anunciada de quanto mais me chamas tua mais distante estás de mim.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

VERDES PRADOS

Eram prados vermelhos, um carmim-rubor de todas as batalhas e de todas as paixões que por ali se havíam deitado quer no leito de sangues vertidos quer no amor que fertilizara papoilas e de outras no oiro, espigas cambiadas de palha-cabelos de jovens que odoravam vidas de vida no zumbido falado dos dedos entrelaçados. Veio a ceifa, deita abaixo Estio, que da louca correría à madura jornada novo corpo lhe há-de despontar botões no caroço do nascer e se do corado há saudade no verde se renovam as histórias.

domingo, 27 de abril de 2008

OBRIGADO

Por ter nascido e saber ver e ler e escrever. Por conhecer o amor e também as dores de muitas espécies. O riso. O choro. A contemplação das coisas simples que nos abraçam todos os dias e fazem de mim quem sou, os outros que se cravam em mim e eu neles e a capacidade de deles crescer e descrever no verbo o que de mim lhes posso dar. Ver o silêncio e escutar a noite. Correr, dançar, voar em passos largos na viagem de um livro e na folha desbotada de palavras que me abrem carreiros na imaginação. Escolher, separar a vida da morte e a morte em vida, respirar sentires e bravios cavalos que disparam no coração ritmos para além de compassos da existência.

sábado, 26 de abril de 2008

PLANTAR (ESCREVER É PODER AMAR-TE)

Lembrei-me agora que se plantar uma semente por cada história que te dê em breve teremos uma floresta. Um tecto verde para nos abrigarmos da tempestade e da canícula a escaldar a pele. Há-de ser uma floresta cuidada de copas frondosas com muitos cambiantes de cor, uma brecha aqui e acolá a deixar passar um fio de luz como um foco num palco e hão-de chegar aves e também flores e frutos, nada em demasia tudo no exacto das palavras que for semeando à medida da colheita de tu as escutares. Nenhum fogo lhe há-de surgir que aqui a chama que se acende é a que tenho agora e no dia que as histórias se completarem num milhão e tu por fim adormeceres, a floresta há-de regressar à semente nas mãos de quem saiba plantar o verbo.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

SE DE ABRIL

Se de Abril eu escrevesse fá-lo-ía de Primaveras e brisas mornas, olhares verdes, coração acelerado de vermelho tinto de ensejo, multidões como mares de maré cheia, perguntas e mais perguntas até devassar as minhas interrogações fechadas em quartos sombrios como esqueletos do meu ser que abriguei nos livros forrados a papel de jornal sob a ameaça da calúnia e da destruição de quem os escreveu. Se de Abril eu escrevesse fá-lo-ía enfeitiçada pelo sabor do beijo, liberta de corpetes apertados junto ao peito disfarçando as palavras que sempre soube e mantive engolidas no silêncio de as ouvir no segredo. Se de Abril eu escrevesse faría um poema sem rima todo impresso na minha memória para um dia recordar que às Primaveras também se chamam acreditar.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

O RISO

De todas as artes a que mais custa e que mais fácil se despoleta, desencadeia e contagia, o gracejo rasgado e sonoro dos pulmões, da garganta, dos músculos da face e da barriga, do coração que se acelera e impulsiona como uma alavanca para uma vontade colectiva igual em todos os povos, signo, semiótica universal, tradução sem censura, dizem, timbre único aos homens.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O LIVRO

Abre-me e sufoca-me com o teu olhar. Devora-me aos pedacinhos, tritura cada bocado sentindo o suco que te espalho na boca ao tomares-me entre mãos carinhosamente, intenso no segurar das histórias que te verto por cada vez que me tiras a venda e me cegas à luz do dia, apaixonadamente, entrego-me, deixo que me vinques nas horas plenas de retorno ao mesmo sitio e me sublinhes o que de melhor te atiço na voracidade de prosseguires a descoberta de mim, lentamente, até ao final em que morno me fechas plácido e suspirando no regozijo da leitura.

terça-feira, 22 de abril de 2008

VIDA (IM)PERFEITA

Não quero que me adores, gosta-me como sou, imperfeita, mal acabada de virtudes no carácter defeituoso do bem e do mal, uma balança mal calibrada que tende a caír para o lado fácil das escolhas simples de ser feliz sem mais atavios, sem complicações de existência sobre a vida e sobre a morte, sem raciocinios longos da interrogação de estar aqui, agora e contigo. Estejamos, sejamos nós apenas, aproveitemos o tempo de sol, o da chuva e todos os instantes que não seguramos por não nos importarmos por encontrar neles uma banalidade que não nos merece. Não me adores, gosta-me nesta banalidade de ser simples e tua em todos os instantes que vão passando e se tornaram uma vida.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

O SOM DA VIDA

Do rádio desprendem-se sons de notas antigas que lembram outras músicas, as que cantava quando menina, saltitando numa perna e noutra, as tranças balançadas no ritmo da felicidade e da despreocupação de saber que amanhã pode não haver música, apenas uns ruídos, gritos até.
Do rádio soltam-se notas que ondulam como as ondas do mar e se as cantarolar vai sentir o sal dos beijos daquele dia em que mulher aprendeu o amor na despreocupação de saber que amanhã há partidas e dores e lágrimas e o silêncio a entoar.
Do rádio liberta-se a nota grave de ter cantado tantas músicas, ter aprendido todos os agudos da vida, uma letra sabida na ponta da língua, uma melodia que um dia há-de ensinar.

domingo, 20 de abril de 2008

DE LÁ

Que será que há do outro lado? Do da terra, do da água, do do céu? Do outro lado de mim? E do lado para onde voam os pássaros assustados pelo estalo da espingarda ou das árvores cambadas pelo assobio do vento? Do lado da areia da praia e até mesmo do castelo feito pelas mãos das crianças que brincam enquanto os pais fecham os olhos ao sol pleno e tentam ver o que há do outro lado? E da noite que vem devagar... terá medo de saír do outro lado, o do dia e deitar-se no dia enquanto do dia se ergue na noite e perder-se do lado das estrelas e dos marinheiros que buscam o outro lado do mundo e este numa linha, muito fina, muito esticada do horizonte? Eu vejo essa linha. Será o horizonte o outro lado de mim?

sábado, 19 de abril de 2008

UM DIA...

Apetecía-me tanto que hoje fosse um dia qualquer. Fazíamos de conta que não nos conhecíamos, que éramos tão só um e um, perdidos no mundo à procura um do outro e que quando nos encontrássemos nem sequer ligávamos, nem sequer notávamos que não nos devíamos voltar a afastar e mesmo assim cada um seguía a sua vontade, talvez já incomodados pela troca de olhares, talvez já sabendo cá por dentro que mesmo que não fosse naquele dia num outro mas não muito distante, nos haveríamos de juntar. Por isso hoje apetece-me que seja um dia qualquer e sem fazer de conta de coisa nenhuma. Saber. Não te basta saber que um dia nos encontramos de novo?

sexta-feira, 18 de abril de 2008

O AMOR A ESCREVER

Depois que a tomava nas mãos batía a porta, arremessava-se para os fundos da casa, escondía-se atrás do tanque de lavagem no quintal e nem mesmo as abelhas a zumbirem à sua volta lhe tiravam os olhos cravados do envelope. Abría-o com muito cuidado para não rasgar o papel, às vezes a saliva dele babava demais e até prendía o sobrescrito ao papel tão fininho da carta. Vinha cheia, carregadinha de uma letra miuda com bolinhas a fazerem de pintas nos iis e os oos eram todos corações, perfeitos, muito pequeninos para caberem enfileirados e para que ela soubesse que aquilo não era uma carta. Era o amor a mandar saudades.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

ENTRAR&SAÍR

Acabaram-se os discos, as danças paradas, os sopros ao ouvido, o desejo na mão e até os olhos a ferirem o peito num bate-bate descompassado. Deixa a chave, a da porta e a do coração, fica por alugar um dia a quem queira ser feliz. Como vais passar as noites agora sem par e sem voz de retorno no pensamento alinhado do silêncio em que tudo se entendía como eterno e nada se quería para além das raízes infiltradas num chão certo e sereno, do copo bebido na marca dos lábios que o outro assinalava, nas mãos dadas a escutar a chuva a bater nos vidros. Não digas nada, não arrombes a porta por onde entraste franca, a receber-te. Deixa a chave mas antes de ires ensina-me como se fecha.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

SONHAR

Se do outro lado é onde moras vou até lá, subo colinas e atravesso o mar, enfrento perigos e durmo ao relento. Espera por mim, chego tarde mas apareço. Vê que até as folhas esvoaçam levando noticia de meus passos e nos novos ninhos de andorinhas há o presságio da minha chegada. Espera por mim, que chego mais velha e até cansada, mas nos teus olhos há a frescura que me dessedenta de tanto caminho rasgado pela vontade de te encontrar. Mais rápido te chega o que sonho, vai adiante, pede-te que esperes, eu vou no encalço e quando dos dois me achar à tua frente é tempo de acordares.

terça-feira, 15 de abril de 2008

A MONTANHA

Ao chegarem ao topo sentiram como o ar lhes empurrava os pulmões, arfavam, ríam também, as coxas e as canelas a arderem do esforço da escalada desde o sopé até ao alto. De quem tinha sido esta idéia louca de se aventurarem numa subida tão íngreme, de quem tinha sido a plenitude ao deixarem caír o olhar pelo mundo que à volta os rodeava, de quem tinha sido o primeiro grito e os ecos que lhe responderam igual e ainda as gargalhadas na comoção mal disfarçada de voltarem à infância quando tão grandes só lhes apetecía amarem-se como deuses poderosos de todo o universo?

segunda-feira, 14 de abril de 2008

RITUAIS

Ligou a luz do pequeno candeeiro do lado esquerdo da secretária, abriu as gavetas, cinco lápis, uma caneta de tinta permanente, as folhas acertadas num maço, a fumegar a chávena de café, já de asa lascada e o cigarro não fumado junto às beatas empilhadas no cinzeiro, o relógio de pulso liberto do braço estiraçado adiante, o gato na alcofa tufado, vai agora, é agora, tudo a postos, ajeita-se no cadeirão, traça o primeiro risco cinza sobre a folha, delimita cantos, ao miolo o ataque. Mas parou de imediato, que lhe falta o mais importante: o xaile que a aconchega nos ombros as palavras que tem junto ao peito.

domingo, 13 de abril de 2008

O VENDEDOR DE JORNAIS

Ainda mal rasga o dia já o assobio golpeia estridente a guita que abraça as folhas de jornais quentes e húmidas da noite deitada nas tintas e tapetes, calos nos dedos que não sentem o esticão ao cordel a separar letras, assim dói menos, de repente, talvez a orfandade das páginas exteriores atiradas ao vento não gemam o frio da noticia de mais sangue a tingir gordas que vendem melhor que a baixa de preços no trigo, mentiras, loas, boatos que se ondulam e se transformam no pregão quase mouro do grito que apela ao freguês.

sábado, 12 de abril de 2008

A (HISTÓRIA)

Talvez só a ti não te tenha contado uma história, uma qualquer que tantas vezes dizes ser tua e eu digo ser de todos, mas hoje e porque é hoje, esta história de entre um milhão há-de ser a tua e tu saberás nela a diferença das outras porque das outras todos temos e esta e unicamente esta é a minha e a tua. Não se conta.


(a nós)

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A VOZ

Era o homem mais feio que alguma vez vira de tão perto, calvo, um nariz semelhante a um bico de ave, os olhos pequeninos escondidos fundo por detrás das lentes grossas, uma fenda a servir de boca, orelhas descoladas do crâneo e uma ausência total de queixo que se diluía no pescoço papudo. No entanto, as mulheres envolvíam-se na sua companhia em sorrisos ternos e mãos juntas ao peito, traçavam pernas na posição de ficar um pouco mais, nadar naquela ambiência pastel em que parecíam figuras de quadros apanhadas num qualquer Sábado à tarde de Primaveras mornas. Não lhe vía encanto, olhava-o de longe e intrigava-se de onde surgía tanta harmonia. Um dia aventurou-se no perto e na voz que desfiava poemas com o sentimento do amante, sorriu, amparou o coração junto ao peito e do alheio fez-se quadro também.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

ROSAS DE HOLANDA

As mãozinhas espalmadas no vidro da vitrine embaciaram a visão gulosa dos bolos coloridos. Tanto creme, tanto doce, aquele forro acetinado no céu da boca, salivou, engoliu em seco, contou no bolso as moedas à solta dos dedos, adivinhar o custo, pagar todo o preço por um desejo de olhos fechados, lamber os beiços e encontrar a felicidade. Apontou, aquele, não, o outro de chocolate e com golpes que desvendam um creme firme cor-de-rosa, rosas de holanda, porque chamam rosas de holanda a um bolo que se assemelha a uma tulipa, que importa, há-de desfolhá-la até à base feita de uma espessa massa em que se trituram pedacinhos de chocolate e amêndoa. O delirio vem na ponta da pinça, os dedos seguros, olhos tortos para o tesouro, admiração, cheirar o amanteigado da forma cilindrica, encostar os lábios e sentir o frio levemente amargo do cacau, a ponta da lingua a desflorar o recheio rico. É agora. Agora abre a boca e trinca tataeado, sustém o respirar, dilata as papilas, um encontrão, escapa-se-lhe o instante e na bochecha inchada prova numa única vez o anseio de muitas vezes.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

NUA

Para não doer despía-se. Ficava nua à mercê de olhos, dentes e perguntas. Do falo não ligava, ignorava como parte do acordo que tinha consigo. Às vezes ficava a mirar-se guardada, muito bem dobrada respeitando vincos, pregas, pequenas costuras, fechos. Enquanto se dava abría a gaveta e sorría por se ver tão bem arrumada, limpa, perfumada de todas as coisas que ainda tinha da meninice e se mantinham na frescura do resguardo da alma. Do resto não ligava, podía apodrecer ali, maltratada e humilhada na arma viril, comida no fisico pela idade e pelo uso sem tino, espancada no apontar do dedo, nos adjectivos raivosos que lhe bolsavam no rosto sem a verem. Ela também não os vía. Olhava a sua alma e sorría. Por isso despía-se sempre antes da roupa.

terça-feira, 8 de abril de 2008

O QUE SE SABE

Não era isto que esperava. Não esperava pelo ramo de flores. Nem pelo colar de pérolas. Nem pelas horas a murcharem na solidão da casa demasiado grande para dois. Para um. Pelas desculpas beijadas a taparem-lhe a boca retirando o oxigénio da argumentação. Do ultimatum em segredo. Um dia destes... Um dia destes vai ser o dia igual ao de véspera e a todos os que se lhe seguirem que no coração mora uma casa demasiado grande para deixar de perdoar e até tentar esquecer o ramo de flores que se banha no choro escondido na almofada fria e que ampara o desejo do arrependimento nas horas em que sabe o que espera.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

SENSIBILIDADES

Por tudo e por coisa nenhuma choramingava, armava beicinho, molhava-lhe a vista por um cisco, por um filme, por conversa alheia, não comovia a ninguém tão pouco a ela mesma, que com o tempo achava-se enferma de algum furo no sacro lacrimal, deixava-se andar, deixava-se estar num passo de braços traçados sem consolo nem desconsolo, um fio ténue de emoção sem disparo do relógio interior, incompreensão pelas tempestades de riso alheias e pelos gritos desvairados da partida do soldado, tudo frágil, tudo mole, tudo choramingado. Até ao dia em que um eclipse fez do dia a noite e na escuridão tapada sentiu que a sua pequenez eram como as suas lágrimas, gotas de nada e no entanto alguém a havería de esperar para luz se fazer de novo.

domingo, 6 de abril de 2008

D.FOFA E SEU MARIDO

Conheci D.Fofa solteira, amiga de marinheiros, comida de mãos abertas e farta de festas no lombo, focinho prazenteiro nos olhos húmidos castanhos que sabem ver passadeiras no verde e parar no vermelho. D.Fofa acomoda-se nos cartões que o arrumador de carros de uma só perna lhe muda a cada chuvada que cai. D.Fofa é livre e altiva. D.Fofa cheira o ar e sabe as horas a que o perigo espreita. Tenho visto D.Fofa acompanhada, não sei como se chama o cão rafeiro que a acompanha, tão igual a ela que dificilmente pensei tratarem-se de dois até os ver juntos. D.Fofa e seu marido são inseparáveis, ela dorme ele vigia, repartem ossos e arroz de vésperas no apetite desejado das mãos gentis dos marinheiros, depois o marido lambe o focinho negro de D.Fofa, ela late, abanam as caudas felizes. Acho que se amam.

sábado, 5 de abril de 2008

TROVOADA

Não tenhas medo, não me deixes a mão, é só barulho, tenho medo, são as nuvens aos encontrões, mas as nuvens são de algodão, pois são, tenho medo, são as gargalhadas das nuvens, riem tão alto, para nós as ouvirmos, assustam-me, não tenhas medo, vêm cá abaixo, não, brincam no recreio lá ao alto, e aquilo, aquilo são relampagos, tenho medo, são luzes para as nuvens verem, é noite lá em cima, festejam, tanto barulho, como a tua festa de anos, têm velas, são os clarões que vês, não posso ir, não foste convidado, quero ir, não podes, então quando fizer anos não as quero na minha festa, está bem mas agora dá-me tu a mão. Tens medo?

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A SENTENÇA

Amanhã partes. Amanhã é o último dia. Amanhã deixas as manhãs e as noites. Amanhã largas o jejum, as dietas, as correrías, o fato cinzento, as contas por pagar, as dores de cabeça, o cumprimento forçado, a mulher e os filhos e o cão da vizinha que não te deixa dormir, a colega com quem sonhas erótico, o lugar de estacionamento, as férias e os fins de semana rápidos, a reforma, as viagens que nunca fizeste, a infância, a primeira vez. Reformulas. Regozijas. Renasces. E no acordar do pesadelo abraças-te, segurando o teu corpo à vida que vai passando.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

TELEPATIA

Pensa em mim e o telefone toca, perguntas como estou, estou bem mas nada digo, só abano a cabeça na felicidade muda de me teres ouvido chamar-te e de me chamares pelo meu nome e eu saber que é para mim que falas e perguntas e queres saber tudo e eu com tanta coisa para te contar nem consigo lembrar-me de nada importante para te dizer, só penso que tens que continuar a falar e a perguntar-me as coisas que desejei perguntasses e manter-me naquele som timido do nada que quer dizer tudo e tu até respondes como se esse silêncio da boca a sorrir viesse de dentro de mim em frases completas que te entrego em sim, quero, sei. Pensas em mim e eu sei-o.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

PARTIR & REGRESSAR

Depois de ti e das tuas mãos e da tua boca e dos teus sonhos não haverá outro, assim o dissera antes de tombar em novo tu, com novas mãos, com nova boca e com novos sonhos que o coração é cigano e precisa de sangrar o amor como uma bomba a ferrar para que funcione exacto e o fluido sirva de unguento ao desejo e ao bem-querer e ainda depois deste se gaste mais eus, mais mãos, mais bocas e mais sonhos, sempre novos, sempre últimos e derradeiros até à vinda de um outro e tantos mais quantos o coração permita amar e deixar ir e voltar a receber como o derradeiro, pois se na entrega está o viver no regresso está o amor.

terça-feira, 1 de abril de 2008

SHOCK TÉRMICO

Foi por causa do calor que entrou na pastelaria e pediu um copo de água. Sob as pás das ventoínhas sentiu os fios dos cabelos esvoaçaram ao de leve, o tempo pareceu abrandar, quase cerrou os olhos. Defronte os rebuçados coloridos, as bolachas, os biscoitos, tudo metodicamente arrumado como se a canícula não existisse e procurasse deliberadamente desmontar a ordem das coisas. Um gole de água, os bolos alinhados pela categoria de secos, com frutas, com cremes, deitados numa cama comum à devassa de todos. Rodou a cabeça, observou as pessoas amparadas nas palmas de mãos, cotovelos vincando as migalhas das torradas, paradas na conversa, um ralenti que parecía ondular as imagens pelo abafado. Depois notou numa mesa de canto um casal, um quadro vivo, segredavam, sorríam frescos. Ela acabou o copo de água, olhou-o, reconheceu-o, mais tarde ele entraría em casa, à sua mesa assentaría os cotovelos nas migalhas e falaría com ela de conversas paradas até se deitarem na mesma cama, devassa, tudo metodicamente certo e arrumado como se nunca tivesse acontecido aquele dia de calor e ela tivesse fugido para um copo de água que a gelou no sangue.