Em certos dias perdía a voz, um único som ou respirar mais arranhado conseguía despregar da garganta e mesmo que se esforçasse, as cordas vocais atavam-se em nós e ruído algum se produzía. Não o fazía por intenção: vía o mundo como uma pauta, as notas pretas a destacarem o fundo muito branco dos cadernos de musica, organizadas, linha acima, linha abaixo, cinco ao todo. Sempre o sentira assim. Primeiro sem o entender e sem alcançar porque perdía o som que se agitava dentro do peito, as costelas a vibrarem como um diapasão, a afinação era nenhuma e aquele tormento de colcheias e semi-colcheias a chocarem perturbava-a sem conseguir chegar ao aviso e ao pedido de socorro. Com o tempo aprendeu a engolir em seco e as notas empurradas pela bola de ar inspirada eram atiradas de costas numa tontura que as deixava sem acção por momentos. Mas logo se organizavam e se formatavam na pauta, ordenadamente, o som pronto a ser expelido. Mas não saía. Subíam como vapor até ao cérebro e durante horas, dias atormentavam-na numa sinfonia terrível que lhe dominava a vontade.
O vómito surgiu no dia em que lhe beijaram os lábios. Cuspiu tudo a jorro, em golfadas negras e brancas que sujaram os pés de quem a beijou. Ele horrorizado partiu em debandada e foi incapaz de agarrar as notas caídas e formar uma simples melodia para lhe oferecer.
2 comentários:
E assim acontece pela vida fora.
Belo texto.Gostei imenso.
Um beijo doce
Interessante essa maneira de descrever um momento...
Parece-me que ele não soube o que ia dentro daquela alma para isso bastava ler os olhos.
Juntar as notas e numa melodia improvisada oferecer-lhe os encantos da vida.
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